![]() |
Contardo Calligaris (foto Gabriel Rinaldi) |
‘É preciso sentir plenamente
as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse
ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim’. - Contardo
Calligaris.
Reflexões sobre a felicidade
são sempre pertinentes, pois dizem respeito à vida de todos nós. No Fronteiras
do Pensamento, nomes como Gilles Lipovetsky, Pascal Bruckner e Paul Bloom
trouxeram seus ensinamentos sobre a questão, em conferências e vídeos.
Desta vez, Contardo
Calligaris, psicanalista italiano, traz as lições da psicanálise para esta
reflexão. O italiano fala sobre a importância de tirarmos o foco constante na
felicidade, e passarmos a buscar o viver integralmente - o que inclui cruzar as
experiências e os sentimentos negativos.
Calligaris defende a
necessidade de se construir uma vida interessante, pela qual tenhamos apreço, e
não projetar nossa busca por motivação e significado naquilo que não possuímos:
‘não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de
interesse pelo mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior’,
explica o psicanalista.
O que é felicidade hoje?
Contardo
Calligaris: Não gosto muito da
palavra felicidade, para dizer a verdade. Acho que é, inclusive, uma ilusão
mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do bem-estar. A
sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte
de bem-estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco
ridículo.
Um exemplo é a fala do
churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao escritório e o
taxista diz: ‘Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num churrasco
tomando cerveja’. Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e não haveria
prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.
Mesmo que não vissem
problema, pode ser que detestassem as pessoas lá e não se divertissem. Em
geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo, estamos sempre lamentando
que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada a prazeres imediatos,
quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista. Por isso, nos
queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito discretos.
Mas continuamos acreditando que ser
feliz é ter esses prazeres que não nos permitimos. E agora?
Contardo
Calligaris: Ligamos felicidade à
satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio
funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos
satisfazer plenamente.
O fato de que você pode
desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma joia ou uma
viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela
mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará
conta de que está na hora de desejar outra coisa.
Esse mecanismo sustenta ao
mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que
não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz.. Quero é ter
uma vida interessante.
Mas isso inclui os pequenos prazeres?
Contardo
Calligaris: Inclui pequenos prazeres,
mas também grandes dores. Ter uma vida interessante significa viver plenamente.
Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica sem alguma coisa que é muito
importante para você
.
É preciso sentir plenamente
as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse
ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim.
O que adianta garantir uma vida longa se
não for para vivê-la de verdade? É isso que temos de nos perguntar?
Contardo
Calligaris: Quem descreveu isso bem
foi (o escritor italiano) Dino Buzatti, no romance ‘O Deserto dos Tártaros’.
Conta a história de um militar que passa a vida inteira em um posto avançado
diante do deserto na expectativa de defender o país contra a invasão dos
tártaros, que nunca chegam.
Mas, tem um lado simpático na
ideologia do preparo. É que está subentendida a ideia de que um dia a pessoa
viverá uma grande aventura. Mas o que acontece, em geral, é que a preparação é
a única coisa a que a gente se autoriza.
Então, pelo menos há um desejo de viver
uma aventura?
Contardo
Calligaris: Mas os sonhos estão
pequenos. A noção de felicidade hoje é um emprego seguro, um futuro tranquilo,
saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos anos de vida.
Acho estranho quando vejo
alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha profissional, leva em conta o mercado
de trabalho, as oportunidades, o dinheiro... Isso nem passaria pela cabeça de
um jovem dos anos 1960.
A julgar pela quantidade de fotos
colocadas nas redes sociais de pessoas sorridentes, elas têm aproveitado a vida
e se sentem felizes. Ou, como você aborda em uma crônica, hoje mais importante
do que ser é parecer feliz?
Contardo
Calligaris: O perfil é a sua
apresentação para o mundo, o que implica um certo trabalho de falsificação da
sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá status.
Mas, esse fenômeno é anterior
ao Facebook. Se você olhar as fotografias de família do final do século 19,
início do 20, todo mundo colocava a melhor roupa e posava seríssimo. Ninguém
estava lá para mostrar que era feliz. Ao contrário, era um momento solene. É a
partir da câmera fotográfica portátil que aparecem as fotos das férias felizes,
com todo mundo sempre sorridente.
E a gente olha para elas e pensa: ‘Eu
era feliz e não sabia’.
Contardo
Calligaris: Não gosto dessa frase,
porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente nunca deveria lamentar
nada, em particular as próprias decisões.
Acredito que, no fundo, a
gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas
circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que
existe isso.
As escolhas ao longo da vida geram
insegurança e medo. Em relação a isso, você diz que há dois tipos de pessoa: os
‘maximizadores’, que querem ter certeza antes de que aquela é a opção certa, e
a turma do ‘suficientemente bom’. O segundo grupo sofre menos?
Contardo
Calligaris: Tem uma coisa
interessante no ‘maximizador’: é como se ele acreditasse que existe o objeto
mais adequado de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro que não existe.
A busca da perfeição não gera
frustração, pois sempre haverá algo que a gente perdeu?
Contardo
Calligaris: Freud dizia que o único
objeto verdadeiramente insubstituível para a gente é o perdido. E não é que foi
perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que nunca tivemos.
Então, faz sentido que nossa
relação com o desejo seja esta: imaginamos existir algo que nunca tivemos, mas
que teria nos satisfeito totalmente. Só não sabemos o que é.
Como nos livrar desse sentimento?
Contardo
Calligaris: Temos de tornar cada uma
de nossas escolhas interessante. Isso só é possível quando temos simpatia pela
vida e pelos outros - o que parece básico, mas não é no mundo de hoje.
Não por acaso, o grande
espantalho do nosso século é a depressão. A falta de interesse pelo mundo e
pelos outros é o que pode nos acontecer de pior
.
Complica ainda mais o fato de, como você
já abordou, enfrentarmos um dilema eterno: desejamos a estabilidade e também a
aventura. Então, entramos em uma relação ou um emprego, mas sofremos porque nos
sentimos presos e achamos que estamos deixando de viver grandes aventuras. Isso
tem solução?
Contardo
Calligaris: Não sei se tem solução. A
gente vive mesmo eternamente nesse conflito. Agora, como cada um o administra é
outra história.
Pode-se optar por uma espécie
de inércia constante, que será sempre acompanhada da sensação de que você está
realmente desperdiçando seu tempo e sua vida, porque toda a aventura está
acontecendo lá fora e, a cada instante, você está perdendo os cavalos
encilhados que passam e não passarão nunca mais. Viver dessa maneira não é uma
das opções. Mas você pode também, em vez disso, permitir se perder.
Permitir se perder no sentido de
transformar a vida em uma eterna aventura?
Contardo
Calligaris: Mas também nesse caso
você terá coisas a lamentar. Eu, pessoalmente, fui mais por esse caminho. Mas o
preço foi muito alto.
Por exemplo, eu não estive
presente na morte de nenhum dos meus entes próximos, porque morava em outro
país e sempre chegava atrasado, no avião do dia seguinte.
Hoje, por sorte, meu
filho - que é grande, tem 30 anos - vive perto de mim. Por acaso, ele decidiu
vir para o Brasil. Mas não o vi crescer realmente.
Para ser feliz, enfim, o segredo é não
buscar a felicidade?
Contardo
Calligaris: Isso eu acho uma
excelente ideia. A felicidade, em si, é realmente uma preocupação
desnecessária. Se meu filho dissesse ‘quero ser feliz’, eu me preocuparia
seriamente.
Preferia que dissesse o quê?
Contardo
Calligaris: Só gostaria que ele me
dissesse: ‘Estou a fim de…’ A partir disso, qualquer coisa é válida. O que
angustia é ver falta de desejo nas pessoas, em particular nos jovens. Agora, se
ele está a fim de algo, mesmo que isso pareça muito distante do campo do
possível dentro da vida que leva, eu acho ótimo.
Fonte: Dagmar Serpa | Cláudia
(JA, Mar19)