Stephen Greenblatt é um dos principais
estudiosos do dramaturgo inglês, fala sobre pertinência da visão do escritor
inglês sobre os líderes autoritários
Ilustração da Peça ‘Júlio Cesar’, feita para edição do Século 19 |
Como pode um país inteiro
cair nas mãos de um tirano? Esse questionamento atemporal foi um dos que
moveram a obra de Shakespeare por décadas, durante o século 16. E mais: seu
retrato dos líderes autoritários ainda tem algo a nos dizer.
É o que afirma o americano
Stephen Greenblatt, professor da Universidade de Harvard e um dos principais
estudiosos dos escritos do dramaturgo.
Seu livro mais recente, de
2018, é ‘Tyrant – Shakespeare on Politics’ (Tirano:
Shakespeare sobre política, em tradução livre), um estudo sobre as raízes e consequências da tirania retratadas pelas
peças de Shakespeare, sempre de maneira oblíqua e indireta, deslocadas para
outra época e lugar.
Shakespeare tornou seus
personagens os líderes romanos Caio Márcio Coriolano e Júlio César, figuras
inglesas e escocesas lendárias como Jack Cade e Rei Lear e resgatou Ricardo 3º
e Macbeth. Criou, ainda, tiranos imaginários, como o imperador Saturnino, em ‘Tito
Andrônico’, o corrupto Angelo, em ‘Medida por Medida’ e o paranoico rei Leonte,
em ‘Conto de inverno’.
Mesmo sem nenhuma menção
nominal a Donald Trump, o livro de Greenblatt foi recebido como um recado de
aguda atualidade sobre o presidente americano.
“No início de uma de suas
peças históricas, Shakespeare introduz a figura de Rumor, cuja tarefa, num
figurino ‘cheio de línguas pintadas’, é pôr em incessante circulação histórias
‘sopradas por suspeitas, invejas, conjecturas’ (Henrique IV, parte 2, prólogo, linha 16). Dolorosamente se evidenciam seus efeitos em sinais de interpretação
errônea e desastrosa, consolações enganadoras, alarmes falsos, guinadas bruscas
que vão da arrebatada esperança ao desespero suicida”.
O parágrafo é parte de um
trecho do livro de Greenblatt, sem publicação no Brasil até o momento, presente
na 31ª edição da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles,
lançada em março de 2019.
Stephen Greenblatt falou
sobre por que trazer o tema à tona nesse momento, sobre como Shakespeare
acreditava que um tirano se sustentava no poder e o que ele antecipou a
respeito desses líderes.
O que te
levou a examinar os tiranos criados por Shakespeare? Por que agora?
SG - Muitas das premissas em que a
liberdade democrática se baseia estão sob forte pressão, e não somente por
parte de governos abertamente autoritários. Acho que, em geral, tendemos a ser
excessivamente confiantes com relação às normas da nossa sociedade suportarem
[a pressão] e as coisas continuarem como de costume. Nada poderia estar mais
distante da verdade.
A partir
desse aspecto, por onde começar a ler a obra de Shakespeare?
SG - Demagogia, mentir
compulsivamente, ataques à liberdade de expressão, comportamento narcisista,
populismo fraudulento e afins, são todas características do ‘Ricardo 3º’ de
Shakespeare. Eu aconselharia leitores contemporâneos a começar por aí.
Por que a
tirania foi tão central na obra de Shakespeare?
SG - Shakespeare escreveu em uma época de grande incerteza sobre o futuro
de seu país. A rainha [Elizabetth 1ª] estava envelhecendo e havia se recusado a
nomear um sucessor.
O fracasso da Invencível
Armada [exército reunido pela Espanha para invadir a Inglaterra] em 1588, não
acabou com o temor de uma invasão estrangeira que, ao contrário, era continuamente
esperada. E o regime tinha também inimigos internos.
Além disso, como dramaturgo
popular, Shakespeare era fascinado pela manipulação das massas por líderes
poderosos e carismáticos.
Em quais
peças ele a retratou?
SG - Já citei ‘Ricardo 3º’. Mas poderia acrescentar ‘Júlio César’, ‘Macbeth’,
Leonte de ‘O Conto de Inverno’, ‘Coriolano’ e muitos outros.
Como a falta
de liberdade de expressão à época influenciou sua maneira de retratar a
tirania?
SG - Shakespeare não podia
representar diretamente, de forma segura, figuras ou eventos contemporâneos [a
ele]. Mas encontrou maneiras de abordar essas questões perigosas de forma
oblíqua.
Os censores de regimes
repressores podem, na ocasião, simplesmente não notar o que está acontecendo.
Muitas vezes, porém, eles estão bastante cientes das implicações do que quer
que esteja sendo representado ou dito, e mesmo assim escolhem permitir que
continue impune.
Essa tolerância pode se dever
a uma preocupação de como [a censura] seria vista aos olhos da opinião pública
— daí que, mesmo durante o Levante de Soweto [série de protestos dos negros,
ocorridos em 1976, contra o regime de segregação], o regime sul-africano do
Apartheid não queria ser visto reprimindo uma peça de Shakespeare e,
consequentemente, permitia que Otelo beijasse Desdêmona em público — ou ao fato
de desejarem permitir aliviar um pouco a tensão.
Essa liberação da tensão é
considerada segura porque o anteparo estético — o entendimento coletivo tácito que
obras de arte estão fora da esfera do sério — funciona como uma fronteira
invisível que mantém sob controle o que, de outra maneira, pareceria perigoso.
O importante é que todos os envolvidos mantenham essa fronteira intacta.
Shakespeare nunca — ou quase nunca — a rompia.
Qual era a
teoria dele sobre como tiranos conseguiam se manter no poder?
SG - Shakespeare acreditava que nenhum tirano chegava ao poder sem ter
muitos facilitadores. Há aqueles que não conseguem se ater ao fato de que o
tirano é tão ruim quanto parece. Sabem que ele é um mentiroso patológico e
enxergam perfeitamente que ele tenha feito uma ou outra coisa terrível, mas têm
uma estranha propensão a esquecer, como se fosse um esforço lembrar o quanto
ele é péssimo. São irresistivelmente atraídos para a normalização do que não é
normal.
Outro grupo é composto dos
que não esquecem que o tirano é um mala miserável, mas que, no entanto, confiam
que tudo vai seguir dentro da normalidade. Eles se convencem de que sempre
haverá um número suficiente de adultos na sala garantindo que promessas sejam
mantidas, alianças sejam honradas, e instituições fundamentais respeitadas.
Há também os que se sentem
apavorados ou impotentes em face da intimidação e da ameaça de violência, e um
grupo mais sinistro, que consiste naqueles que se convencem de que podem tirar
vantagem da ascensão do tirano ao poder. Como quase todo mundo, estes enxergam
perfeitamente bem quão destrutivo ele é, mas estão confiantes de que ficarão um
passo à frente do curso de sua maldade ou que conseguirão tirar proveito dela.
Por fim, há uma multidão
heterogênea daqueles que seguem suas ordens, alguns de forma relutante, mas
simplesmente evitando ter problemas; outros com gosto, esperando agarrar algo
para si no caminho; outros ainda apreciando o jogo cruel de levar seus alvos,
frequentemente do alto da hierarquia social, ao sofrimento e à morte.
Tendemos a
crer que o que acontece em nosso tempo é novidade na história. O que
Shakespeare antecipou com relação aos líderes autoritários?
SG - Nós obviamente temos memória muito curta. Seria de pensar que as
catástrofes desencadeadas por Hitler e Mussolini teriam enterrado esse demônio
por pelo menos um século. Mas cá estamos, podendo fazer uma lista crescente de
tiranos autoritários, hipernacionalistas e seus facilitadores oportunistas.
Shakespeare acreditava que as
causas da ascensão deles estavam profundamente enraizadas na nossa natureza
enquanto espécie, bem como nas circunstâncias locais de desigualdade de renda,
e assim por diante.
Pensamos que a habilidade do
tirano de conseguir penetrar as mentes de praticamente todo mundo — a presença
indesejada dos rostos e vozes desses líderes todos dias e a quase toda hora —
resulta inteiramente das novas mídias digitais
.
Mas as peças de Shakespeare
sugerem que essa é uma característica essencial de um certo tipo de poder.
Sugerem também que reflete uma pulsão compulsiva no próprio líder.
Por fim, quando um país cai
nas mãos de um líder autoritário, muitas vezes é difícil vislumbrar como [esse
período] chegará ao fim. Mas Shakespeare nunca perdeu de vista o fato de que
esses desastres não duram para sempre.
Fonte: Juliana Domingos de
Lima |
Nexo
(JA, Mar19) ,