O porta-voz da Presidência,
general Otávio Rêgo Ramos, disse na segunda-feira (25) que o presidente Jair
Bolsonaro determinou que haja ‘comemorações devidas’ em quartéis e batalhões no
domingo (31), em razão dos 55 anos do golpe militar, quando as Forças Armadas
tomaram o poder e deram início a um período de exceção que durou até 1985.
Para o porta-voz, ‘o
presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar’, mas uma reação
apoiada pela sociedade contra uma alegada ameaça comunista. Nos bastidores,
parte da cúpula militar do governo defende mais discrição na data. O temor é
ampliação do desgaste da imagem do presidente.
‘É o primeiro 31 de março sob a égide do
governo de Jair Bolsonaro. Espera-se que haja algum tipo de comemoração,
digamos assim, mas ela será, obviamente, intramuros’, afirmou o
vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão.
O aniversário do golpe,
chamado de ‘Revolução Democrática de 1964’ pelos militares, já tinha
celebrações previstas em instituições como a Escola Preparatória de Cadetes do
Exército e o Comando de Operações Terrestres. Haverá um almoço comemorativo no
Clube Militar do Rio.
As comemorações dos militares
O golpe de 31 de março de
1964 deu início a uma ditadura que perseguiu adversários políticos, promoveu
assassinatos e torturas, além de censura na imprensa e nas artes. Até 1985, o
país foi governado por cinco generais. A data, desde a deposição de João Goulart,
sempre foi comemorada nos meios militares, em menor ou maior grau.
Segundo a historiadora
Janaína Martins Cordeiro, em sua tese de doutorado ‘Lembrar o passado, festejar
o presente: as comemorações do Sesquicentenário da Independência entre consenso
e consentimento (1972)’, defendida em 2012 na Universidade Federal Fluminense,
o ápice do uso de festas cívicas e celebrações durante a ditadura se deu em
1972, no governo de Emílio Garrastazu Médici.
Naquele momento, as
comemorações dos 150 anos da Independência, realizadas durante quase todo o
ano, foram usadas para promover a adesão e o engajamento ao regime, que passava
por seu período mais sombrio, com intensificação das perseguições a
adversários, selada pelo Ato Institucional número 5, de quatro anos antes.
O processo de redemocratização
Com a abertura democrática
nos anos 1980, o país passaria por um processo de ressignificação da ditadura.
Um discurso de 1988 do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte,
Ulysses Guimarães, resumia o tom da abordagem cada vez mais presente no debate
público.
‘A persistência da
Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas
e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia,
bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo’,
discursou Ulysses, quando a Carta foi promulgada.
No ano seguinte o Brasil
elegeria com voto direto seu primeiro presidente após os 21 anos de ditadura
militar. Com os civis no poder, os chefes do Executivo passaram a ser mais
discretos em relação à data. Os militares, no entanto, nunca fizeram um mea
culpa a respeito do período da ditadura e sempre lembravam de 31 de março nos
quartéis.
Para Aline Prado Atassio, que
defendeu em 2007, na Universidade Federal de São Carlos, a dissertação de
mestrado em ciências sociais ‘A Batalha pela Memória: Os Militares e o Golpe de
1964’, a tortura e a censura tiveram custos políticos pagos até hoje pelos
militares.
Os integrantes das Forças
Armadas passaram, então, a trabalhar sua própria versão dos fatos. A
pesquisadora lembra que, em 2003, a Biblioteca do Exército chegou a lançar uma
coleção de 14 volumes com 220 entrevistas dadas por militares com a versão
deles sobre o golpe.
A retirada da data do calendário
Com a chegada à Presidência
de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, a data passou a ser comemorada de
maneira mais discreta pelos próprios militares. A celebração saiu de vez do
calendário oficial do Exército em 2011, após a eleição de Dilma Rousseff.
Pela primeira vez desde 1965,
a data de 31 de março não seria mais comemorada oficialmente pelos militares em
suas unidades. As celebrações foram transferidas para os clubes militares, que
reúnem integrantes das Forças Armadas que deixaram a ativa.
Presa e torturada pela
ditadura, Dilma também ajudou a criar a Comissão Nacional da Verdade, para
esclarecer crimes políticos ocorridos no período dos governos dos generais.
Tais grupos foram criados em boa parte dos países da América Latina que
sofreram com golpes nos anos 1960 e 1970. Chile e Argentina puniram agentes de
Estado que cometeram crimes na época. O Brasil, não.
434 Pessoas
434 pessoas morreram ou
desapareceram por ação da ditadura militar, segundo relatório final da Comissão
Nacional da Verdade, de 2014.
A Comissão Nacional da Verdade
tinha o objetivo de resgatar a memória da ditadura, sem punir ninguém. A Lei da
Anistia de 1979, confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, perdoou
todos os crimes políticos cometidos na época, de integrantes da luta armada a
agentes de Estado envolvidos em assassinatos e torturas.
O que Bolsonaro diz sobre a data
Há diversos registros
disponíveis na internet de manifestações do presidente, no período em que atuou
como deputado federal, desde o começo dos anos 1990, em defesa das comemorações
de 31 de março, sempre em tom de exaltação. Capitão reformado do Exército, ele
se notabilizou por defender a tortura, e chegou a dizer que o número de
assassinatos políticos da época deveria ser, inclusive, maior do que foi.
Bolsonaro também já exaltou
publicamente, diversas vezes, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
reconhecido pela Justiça como responsável por torturas durante o período. Na
campanha eleitoral de 2018, chegou a confrontar a TV Globo por causa de um
editorial assinado por Roberto Marinho, em 1984, em que o jornalista fundador
da emissora defendia o golpe. A empresa respondeu que reconheceu, em outro
editorial, de 2013, erros do passado.
As releituras da história
Em entrevista publicada em
agosto de 2018, Marcos Napolitano, professor de História do Brasil Independente
e docente-orientador no Programa de História Social da USP, afirmou que existe
uma onda revisionista sobre as ditaduras da América do Sul.
‘Acredito que há uma onda
revisionista em torno das ditaduras no sentido ideológico do termo, que é
paralela ao avanço do conservadorismo e das direitas no continente, saudosas
dos regimes autoritários (...) Esse revisionismo ideológico revela correntes de
opinião que, até bem pouco tempo, eram menos visíveis, e não tinham lugar no
espaço público, justamente por não terem legitimidade para defender a violência
de Estado, ilegal e desumana, que marcou as ditaduras’, disse o historiador.
Napolitano discorreu também
sobre como os historiadores lidam com as várias interpretações sobre um mesmo
período. ‘A história admite várias interpretações, desde que partam de
processos históricos verificáveis e de questões plausíveis. As explicações
consagradas sobre todos os temas e épocas estão em constante revisão, posto que
surgem novas questões e novos documentos. A isso chamo de um revisionismo
propriamente historiográfico, que é saudável para o debate’.
Ele prosseguiu: ‘O problema
começa quando o revisionismo parte de um princípio ideológico fechado em si
mesmo, carregado de certezas a priori, e vai de encontro às evidências
documentais — materiais ou testemunhais —, à própria ideia de veracidade do
fato histórico. Quando essa fronteira é cruzada, estamos no território da pura
e simples disputa por memória em torno de um período, que muitas vezes nega a
verdade, o sentido e a evidência dos processos históricos. Nesse ponto o
revisionismo se transforma em negacionismo’.
Fonte: Estêvão Bertoni |
Nexus
(JA, Mar19)