O que se afirma gratuitamente
pode ser gratuitamente negado − diz um princípio que faz parte do bê-á-bá da
Lógica Formal. Ou, para quem gosta de latim: ‘quod gratis affirmatur, gratis
negatur’.
Bastaria isso para rebater a
afirmação flagrantemente gratuita que Bolsonaro fez em entrevista à Fox News,
chamando de ‘mal-intencionados’ os imigrantes acampados na fronteira americana.
Depois, iria desculpar-se pelo ‘ato
falho’ (sic) e emendou que haveria uma minoria de mal intencionados − outra
fala gratuita. O que sabe ele das intenções dos imigrantes? E o que vem a ser ‘má
intenção’? Buscar melhores condições de vida? Procurar refúgio contra ameaças à
segurança pessoal?
Bem diferentes são os
testemunhos e palavras de quem realmente tem algo a dizer, por sua experiência
nesse campo.
Em Brownsville, Texas, o
voluntário Sergio Córdova, que atua no apoio a imigrantes, certo dia encontrou
o guatemalteco Clemente num ponto de ônibus. ‘Ele estava perturbado e chorando’,
lembra. ‘Abracei-o, e ele me contou que não conseguia encontrar sua filha, não
sabia onde ela estava’.
Em agosto, Clemente saiu da
Guatemala, depois que uma gangue esfaqueou seu pai, matou um primo e mandou
avisar que seria ele o próximo. Levou consigo Wendy, sua filha de 15 anos, por
temer que a sequestrassem. Em agosto, cruzaram a fronteira no Rio Grande e se
entregaram às autoridades americanas, pedindo asilo. Dois meses antes, Trump
proclamara que as famílias não mais seriam separadas na fronteira. Mas Clemente
foi prontamente separado de Wendy (as separações diminuíram, mas prosseguem) e,
posto num centro de detenção, onde logo pegou pneumonia. Acordou num hospital
sem saber onde estava, e nem o paradeiro da filha. Finalmente, recebeu alta e,
liberado da detenção, passou a vaguear nas ruas de Brownsville.
Com ajuda de Córdova e outros
voluntários, localizou-se Wendy num abrigo. Mas só no início de março, após
seis meses de separação, saiu a autorização para ficar com o pai. Nessa fase,
foi importante o auxílio da organização Miles4Migrants que arrecada milhas
aéreas e as transforma em donativos a imigrantes.
Em McAllen, também no Texas, a Irmã Norma Pimentel, religiosa
católica que dirige o Centro de Acolhida Humanitária, é respeitada como uma
heroína local. Em janeiro, às vésperas da visita que Trump faria à cidade, ela
lhe escreveu convidando-o para conhecer o Centro. O convite foi ignorado, mas a
carta é interessante. Ela começa dando boas vindas a Trump, assim como a Irmã
Norma e sua equipe fazem com outros recém-chegados. E prossegue:
“Quando famílias cruzam a
fronteira, são detidas pelas autoridades, mantidas presas por alguns dias e
depois liberadas provisoriamente, enquanto se analisa seu pedido de asilo. Ao
serem liberadas, nós a recebemos no Centro de Acolhida − tem sido nosso
trabalho desde 2014.
Desde então, dezenas de milhares de pessoas − sobretudo da
Guatemala, Honduras e El Salvador − atravessaram a fronteira criando uma
emergência humanitária. A todo momento, dúzias de famílias de imigrantes −
famintas e amedrontadas em terra estrangeira − se acotovelavam no ponto do
ônibus tendo só a roupa do corpo, sem nada para comer ou beber e nenhum lugar
para tomar banho ou descansar. Passavam horas ou dias aguardando seus ônibus.
Desde sua abertura, este
Centro vem trabalhando em cooperação com os agentes públicos e com grupos de
outras denominações religiosas e organizações filantrópicas.
Todos os dias e a
qualquer hora, famílias são recebidas com um sorriso, um prato de sopa quente,
chuveiros e um lugar para repousarem. São pessoas de todos os jeitos e de todas
as idades, e raras falam algum inglês; chegam exaustas e assustadas, carregando
uns poucos pertences num saco plástico. A maioria pernoita aqui antes de seguir
para seus destinos.
Se o Sr. chegar bem cedinho,
vai encontrar os que pernoitaram. Estarão varrendo e arrumando os dormitórios,
ou ajudando voluntários a preparar o café. Mais tarde, as crianças brincarão no
pequeno playground. Para os que seguirão viagem, entregamos um cartão onde está
escrito: 'Por favor, me ajude, eu não falo inglês. Que ônibus devo tomar? Muito
obrigado'.
Sinto-me revigorada na
convivência com essas famílias, principalmente as crianças. E também com os
voluntários, pessoas de diferentes crenças que vieram do país inteiro. Todos
fazemos parte da família humana e somos chamados a viver na solidariedade uns
com os outros. Dignidade humana em primeiro lugar."
Nem Córdova, nem a Irmã Norma
nem os demais voluntários se preocupam com as possíveis intenções dos
imigrantes pobres. Eles simplesmente ajudam as pessoas.
Fonte: Antônio Carlos Boa
Nova
(JA, Mar19)