Quem
tem ambições literárias deve ser de esquerda (em público) e de direita (na
obra)
Não dou
conselhos. Exceto quando me pedem. Aí, depois de cobrar meu salário, digo
sempre o mesmo a uma audiência mais jovem: quem tem ambições literárias deve
ser de esquerda (publicamente) e de direita (literariamente).
Em público,
persiste ainda a ideia bizarra de que a esquerda tem um ‘pedigree’ cultural
mais elevado. A história do modernismo desmente essa fantasia. Mas a fantasia
sobrevive —e, acredite, é mais confortável fazer carreira sem correr maratonas.
Relaxe, seja de esquerda, tudo fica mais fácil.
Literariamente
falando, ninguém escreve grandes obras com ‘bons sentimentos’. Muito menos com
uma visão otimista da condição humana. Nesse quesito, faço minhas as palavras
de Graham Greene: ‘um grande autor tem sempre uma farpa de gelo no coração’.
O próprio
Greene ilustrava essa máxima como grande escritor de direita que era (apesar de
se dizer de esquerda, claro). Lembrei-me de tudo isso quando lia o suntuoso
ensaio de Alfonso Berardinelli, ‘Direita e Esquerda na Literatura’, publicado
pela Editora Âyiné.
Berardinelli,
professor da Universidade de Veneza, começa por recusar dois clichês sobre o
assunto. Primeiro, que a literatura possui um grau de pureza intocado pelas
discussões ideológicas. Segundo, que os escritores são uma raça à parte,
incapazes de ‘legislar’ para a humanidade.
Concordo com o
autor: se entendemos a política no seu sentido mais amplo —uma visão do
indivíduo e da sociedade como eles são, e como gostaríamos que eles fossem—,
tudo é política.
E esse
entendimento tornou-se central entre 1700 e 1900, ou seja, com o Iluminismo
continental e seus herdeiros. A literatura não se limitava a produzir belas
formas. Era também o palco onde o passado e o futuro, a autoridade e a razão, o
arcaísmo e o progresso se enfrentavam com violência singular.
Para
Berardinelli, a Revolução Francesa só aprofundou esse cisma, ao transformar a
política na ‘grande obsessão ocidental’. Depois de 1789, a literatura foi
permanentemente contaminada pelo vírus revolucionário (ou
contrarrevolucionário) —e o escritor, mesmo o mais eremita, foi ‘arrastado’
pelo caudal ideológico.
O historicismo
foi uma dessas forças que sequestraram o ofício dos literatos, entendendo-se
por ‘historicismo’ toda a teoria que procura reconstituir e antecipar o sentido
da história humana. Muitos marcharam pelo partido do progresso, como se fossem
soldados de uma guerra heroica.
Mas os autores
que hoje lemos pela sua importância literária são sobretudo aqueles que
questionaram esse progresso inexorável. Nomes como Leopardi, Baudelaire,
Flaubert ou Dostoievski.
E não deixa de
ser irônico que o repúdio do progressismo ideológico tenha implicado novos e
modernos meios de expressão. Os revolucionários da forma eram os
antirrevolucionários por definição.
O mesmo no
século 20. O historicismo transmutou-se na causa marxista-leninista. Mas os
escritores que sobreviveram ao tempo não foram aqueles que marcharam ao som de
Moscou. São aqueles que frontalmente se opuseram à ‘nova fé soviética’ (Orwell,
Camus, Koestler) —ou lhe viraram as costas (Proust, Joyce, Kafka). Existe
alguma lição nas lições do passado?
Alfonso
Berardinelli acredita que sim, retomando o 'gelo' de que falava
Graham Greene (literalmente).
Em 1912, o
Titanic naufragou ao colidir com o iceberg. Mas, em sentido metafórico, todos
viajamos no Titanic, diz ele. Porque todos vivemos iludidos pela grandeza e
perenidade da nossa civilização; e cegos para a mera possibilidade de um
iceberg terminar com a festa.
Os candidatos
a escritores que aspiram a algo mais do que a mera 'poeira da glória' não são aqueles que embarcam euforicamente na última moda ideológica. Ou, pior
ainda, que se submetem a ela com as certezas dos grandes fanáticos.
Pelo
contrário: são aqueles que questionam todas as causas triunfantes, possuindo
aquilo que Henry James designava como 'imaginação do desastre'.
Ou, para usar
as palavras do próprio Berardinelli, 'não é aconselhável cultivar a ilusão
de que o mar da realidade, no qual navegamos, esteja sob controle'.
Essa atitude
cética e irremediavelmente trágica não produz best-sellers. Mas um dia, quem
sabe, talvez produza algo mais raro: uma grande obra.
Texto: João Pereira
Coutinho, escritor português e doutor em ciência política.
(JA, Abr18)