Grupos pró e anti-Lula se confrontam em dia de
depoimento do ex-presidente, no Fórum da Barra Funda
Autores de
livros recentes no campo da ciência cognitiva procuram repensar o papel da
razão e descrever as armadilhas que ela nos prepara. Segundo algumas novas
hipóteses, a lógica é apenas um artifício retórico para persuadir, e nosso
cérebro evoluiu de forma a nos convencer de que sabemos mais do que sabemos.
O que é o
homem? Platão arriscou uma definição: bípede implume. Ela não durou muito. Logo
despontou Diógenes de Sinope, mais conhecido como o Cínico, que depenou uma
galinha e passou a exibi-la: ‘Eis um homem de Platão’. Como filósofos nunca dão
o braço a torcer, o pessoal da Academia acrescentou ‘e de unhas achatadas’ à
definição original.
Aristóteles
teve mais sorte ao definir o homem como animal racional -‘zóon lógon échon’. Embora filósofos nunca tenham deixado de
apontar incoerências de nossa natureza -nem Kant achava que o homem era
racional o tempo inteiro-, a proposta aristotélica resistiu por mais de 2.000
anos e ganhou especial relevância com o Iluminismo.
Nas últimas
décadas, no entanto, a definição começou a sofrer ataques sistemáticos. As investidas
têm base empírica e vêm de dois flancos distintos.
De um lado,
pesquisas no campo da etologia mostraram que vários outros animais -notadamente
certas famílias de mamíferos e alguns gêneros de aves- são capazes de resolver
problemas projetando o futuro, e recorrendo a várias marcas distintivas daquilo
que chamamos de racionalidade. Em alguns casos, verificou-se até mesmo o uso de
ferramentas e a transmissão cultural.
Ainda que os
superemos em quase todas essas características, fica mais complicado ter na
razão o critério que separa homens de bestas.
De outro
lado, investigações sobre o comportamento humano revelaram que nossa
racionalidade tem mais buracos que um queijo emmenthal. Não é apenas que de vez
em quando ajamos irracionalmente; na verdade, a irracionalidade está inscrita
em nossa forma de pensar, é bastante previsível e, às vezes, quantificável.
Nas últimas
três décadas, pesquisadores elencaram uma lista telefônica de vieses cognitivos
que nos afastam do ideal de razão imaginado pelos filósofos iluministas.
Quer um
exemplo? Se você é petista de carteirinha, talvez veja na Operação Lava Jato
uma articulação das elites para desacreditar a esquerda em geral e o PT em
particular. E, quando alguém lhe mostra que um número maior de políticos de outras
siglas e oriundos do campo ideológico oposto também se viu enredado nas
denúncias, são grandes as chances de você minimizar a importância desse dado,
descrevendo-o como manobra para salvar as aparências da Justiça, ou algo assim.
Em
psicologia, essa operação mental de dar atenção às evidências que sustentam
nossa teoria preferida e descartar as que a contradizem tem nome: viés de confirmação. Ubíquo nas atividades
humanas, ele não é um cochilo da razão, um simples erro aleatório que de vez em
quando cometemos. Trata-se, ao contrário, de um elemento constitutivo de nosso
pensamento, moldado por milhares de anos de evolução biológica.
Assim, onde
quer que exista um viés, existe uma vantagem adaptativa que o esculpiu em nossa
mente. Nem sempre ela é óbvia, mas está lá. Portanto, uma noção mais realista
de ‘razão’ precisa incluir os vieses, ainda que eles pareçam trabalhar contra a
razão.
O
Enigma
Saíram nos
últimos meses vários livros bem interessantes no campo da ciência cognitiva
cujos autores procuram repensar o papel da razão e descrever as armadilhas que
ela nos prepara.
A obra mais
ousada é ‘The Enigma of Reason’, Harvard
University Press, 408 págs., R$ 103,39, R$ 55,96 em
e-book, ‘O Enigma da Razão, dos
franceses Hugo Mercier e Dan Sperber -o original é mesmo em inglês. A
dupla pretende nada menos do que propor uma nova teoria do entendimento humano.
Para Mercier
e Sperber, há um duplo enigma em torno da razão. Se ela é tão útil a ponto de
ter posto o homem no comando da natureza, por que não se desenvolveu na mesma
escala em outros animais? E, se é tão eficaz, como explicar a abundância de
vieses que nos levam a erros infantis nos raciocínios?
Para os
autores, devemos deixar de pensar a razão como um superpoder cognitivo que nos
foi concedido por um capricho evolucionário, e encará-la mais modestamente como
apenas uma das capacidades cognitivas humanas, muito bem adaptada para exercer
sua verdadeira função. E qual é ela?
Aqui,
precisamos prosseguir devagar. Mercier e Sperber começam por conceituar a razão
como um mecanismo de gerar inferências.
Até aí, nada
de muito especial. Bichos também fazem inferências o tempo todo -mesmo sem ter
consciência disso. Eles usam o que já sabem para tirar conclusões sobre o que
ainda não sabem. Esse tipo de operação mental lhes permite antecipar o que
poderá acontecer nos próximos instantes, e agir de acordo -fugir quando
percebem que o predador está se aproximando, por exemplo.
Nossos
amigos peludos ou emplumados não fazem isso a partir de um mecanismo geral de
extrair inferências, mas por meio de diferentes tipos, cada um voltado a um
problema específico: O que comer? Com quem copular? Quando fugir?
Humanos, dizem
os autores de ‘The Enigma of
Reason’, são como outros animais. Não possuímos uma
competência geral para inferir, mas vários mecanismos especializados. A
diferença é que, enquanto os dos bichos estão calcados quase exclusivamente em
instintos, os nossos, ainda que partam de uma base instintiva, são em larga
medida adquiridos a partir da interação com outras pessoas.
Não existe
um instinto de falar português ou inglês, mas há um que nos faz, quando bebês e
crianças, prestar especial atenção aos sons de um idioma com o objetivo de
aprendê-lo -ou adquiri-lo, num linguajar chomskyano. A base da linguagem é,
assim, instintiva, mas seu conteúdo é fixado na interação com outros humanos.
Outra
diferença importante é que, enquanto animais operam de forma automática e
inconsciente, nós às vezes temos consciência parcial de que estamos fazendo
inferências. Entramos aqui no terreno das intuições. Um exemplo: você intui que
sua mulher anda chateada com alguma coisa, ainda que ela não o tenha dito e
possa até negá-lo.
Dois
Paradigmas
Intuições
aparecem prontas ante nossa consciência, mas sentimos que são conclusões que se
formaram dentro de nossas mentes, ainda que de forma opaca. Mercier e Sperber
afirmam que elas são como um iceberg mental: vemos a pontinha, mas há uma
grande massa de processos abaixo da consciência que não conseguimos enxergar.
A dupla
contesta abertamente o que vem se firmando como um novo paradigma da
psicologia, que é o contraste entre intuição e razão, postulado por autores do
calibre de Paul Slovic e Daniel Kahneman.
Segundo essa corrente, temos por assim dizer dois modos de pensar: um
eminentemente intuitivo, que é rápido e se ampara em instintos e emoções, e
outro racional, que é lento e calcado na lógica.
Daí vem o
título do best-seller de Kahneman, ‘Rápido e
Devagar’ , Objetiva.
Mercier e
Sperber sustentam que a razão é, como no ‘rápido’ de Kahneman, uma máquina de
gerar intuições, mas intuições sobre um tipo específico de representação: as
próprias razões, em especial aquelas que nos levam a agir.
No contexto
hipersocial em que evoluímos, usamos essas intuições a fim de produzir razões –argumentos-
para justificar nossos pensamentos e atitudes em relação aos outros, os quais
tentamos o tempo todo persuadir a agir como nós mesmos. Nesse quadro, a própria
lógica se torna mais um artifício retórico usado para convencer do que um
superpoder intelectual.
No modelo de
Mercier e Sperber, alguns dos vieses cognitivos não precisam mais ser vistos
como uma falha catastrófica, mas como uma característica desejável. O melhor
exemplo é justamente o viés de confirmação. Se a razão foi selecionada para nos
fazer justificar nossas atitudes, e para vencer debates, então faz sentido que
busquemos apenas provas em favor de nossas teses, e não contra elas.
Adotada a
lógica da produção de argumentos, o que era antes visto como um erro se torna
um dos pontos fortes da teoria. Nenhum etologista jamais encontrou algo
parecido com o viés de confirmação entre animais.
Não resisto
a citar a frase de Robert Wright em ‘O Animal Moral’,
Campus, sobre nossa parcialidade: ‘O cérebro é como um bom advogado: dado um
conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua
correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como
um advogado, o cérebro humano quer vitória, não a verdade; e, como um advogado,
ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude’.
A
Verdade
Isso
significa que devemos renunciar definitivamente a encontrar a verdade? Talvez
não. O fato de estarmos sempre querendo convencer nós mesmos e o planeta de que
estamos certos não significa que tenhamos sucesso em todas as tentativas. Nós,
afinal, não tomamos qualquer desculpa esfarrapada como argumento válido.
E somos bons
em avaliar argumentos? Se o contexto não trabalhar contra, até que não nos
saímos mal. Examinemos um problema utilizado pela dupla francesa num
experimento psicológico.
Paul está a
fim de Linda, e Linda está a fim de John. Paul é casado, mas John não é. Há
alguém casado a fim de alguém que não o é?
Existem três
respostas possíveis: ‘sim’, ‘não’ e ‘não dá para determinar’. Qual é o seu
palpite?
Por razões
que não cabe discutir aqui, a maior parte dos voluntários americanos e chineses
disse ‘não dá para determinar’. Aparentemente, chegaram a essa conclusão por
não lhes ter sido dado o estado civil de Linda. Mas será necessário ter essa
informação para chegar a uma resposta menos tucana?
Se Linda for
casada, ela está a fim de John, que não é. Isso nos deixa com uma resposta ‘sim’.
Se ela não é casada, temos Paul, que é casado, a fim de uma pessoa não casada -Linda,
o que nos leva mais uma vez a um ‘sim’. Ou seja, em qualquer hipótese, a
resposta é ‘sim’.
Após a
explicação, mais da metade dos voluntários que haviam optado pelo ‘não dá para
determinar’ mudou de ideia e aceitou ‘a verdade’. E isso ocorreu de forma
robusta, com a aceitação do argumento verdadeiro mesmo quando os pesquisadores,
de forma traiçoeira -nenhum experimento psicológico é digno desse nome se não
envolver alguma manipulação-, diziam que o esclarecimento havia sido proposto
por um idiota ou por alguém que ganharia dinheiro se os induzisse a erro.
A tese de
Mercier e Sperber é que somos melhores ao julgar as razões dos outros do que ao
criar as nossas próprias justificativas. E essa é uma excelente notícia. Tal
característica permite que, na interação com as razões dos outros, acabemos
descartando raciocínios ruins e guardando os melhores. Como empreitadas
coletivas, a cultura e a ciência funcionam e até podem nos levar a ‘verdades’.
Ilusão
A ideia de
que a ciência é um saber coletivo é a tese central de ‘The Knowledge Illusion’, Pan Macmillan, 320 págs., R$ 74,90, R$ 51,52 em e-book, -‘A Ilusão do Conhecimento’, dos cientistas
cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach.
Se eles
fossem obrigados a produzir uma definição para o ser humano, provavelmente
diriam que somos animais presunçosos. Ignoramos o básico sobre coisas simples
que utilizamos o tempo todo, mas temos a nítida sensação de que somos experts
nesses objetos.
O exemplo
destacado pela dupla é quase escatológico: a descarga do banheiro. A maioria de
nós é incapaz de explicar o processo de despacho de dejetos. No modelo hoje
mais usado -e mais higiênico também-, o que move a bozerra é o efeito sifão.
Trata-se de física ginasiana, mas isso não nos torna mais aptos a explicar o
milagre.
Obviamente,
o problema não se limita a descargas. Nossa ignorância já foi mensurada em
relação a vários objetos cotidianos, como zíperes, velocímetros, teclas de
piano, máquinas de costura. Melhor nem citar itens que envolvem física de
colegial, como fornos de micro-ondas ou bombas atômicas.
Quando
questionadas sobre o funcionamento das coisas, as pessoas invariavelmente
superestimam seu conhecimento -e se dão conta de sua ignorância somente quando
instadas a descrever em detalhes os processos envolvidos.
Sloman e
Fernbach sustentam que não estamos mentalmente equipados para guardar os
detalhes de objetos nem de situações particulares.
O escritor
argentino Jorge Luis Borges concebeu um personagem dotado de memória perfeita.
Funes, o Memorioso, era capaz de reconstruir cada um de seus dias, atividade
que evitava porque consumia muito tempo. Lembrar todos os eventos de um dia
levava exatamente um dia.
Até
recentemente, contam os autores de ‘The Knowledge Illusion’,
imaginava-se que Funes estava restrito ao mundo da fantasia. Mas, em 2006,
pesquisadores da Universidade da Califórnia publicaram o relato do caso de uma
paciente, AJ, que exibia habilidades próximas às do personagem de Borges.
‘Posso pegar
uma data entre 1974 e hoje e dizer em que dia caiu, o que eu fazia naquele dia
e se algo de grande importância ocorreu (...) Sempre que eu vejo uma data
aparecer na televisão -ou em qualquer outro lugar-, eu automaticamente volto
àquele dia e lembro onde eu estava, o que fazia etc.’, explicou AJ aos
cientistas.
Trata-se de
uma síndrome que leva o nome de hipertimesia. Ela é bastante rara. Poucas
dezenas de pessoas no mundo já receberam esse diagnóstico, mas o simples fato
de elas existirem prova que, se não temos memória perfeita, não é devido a
limites impostos pela bioengenharia. Conseguir mais memória, como sabe o
pessoal que trabalha no desenvolvimento de computadores, é o problema fácil.
Para Sloman
e Fernbach, o cérebro foi projetado para arquivar as grandes regularidades do
mundo, deixando de lado os detalhes. Isso não ocorre para o corpo economizar
recursos, mas porque operar de forma minimalista nos ajuda a fazer
generalizações e, assim, ampliar nossa capacidade de resolver problemas novos.
Como ensinou
Borges, a memória perfeita de Funes matava sua capacidade de abstração e até
mesmo de compreensão: ‘Este -Funes-, não o esqueçamos, era quase incapaz de ter
ideias gerais (...) Custava-lhe compreender que o símbolo genérico 'cachorro'
abarcasse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversas formas’.
Também AJ descreve sua memória muito mais como um fardo, do que como um dom.
Ação
Ok, agora
temos uma boa hipótese para o fato de não estarmos equipados com uma estrutura
mental que nos permita conhecer em detalhe todos os objetos com os quais
lidamos, mas isso ainda não explica por que temos a ilusão de que sabemos muito
mais do que sabemos. Por que vivemos essa mentira?
A resposta
curta é: para poder agir. Se fôssemos proceder a uma avaliação realista e
completa antes de executar qualquer ação, nós nos perderíamos em dúvidas
hamletianas e nunca faríamos nada. Pior até, mergulharíamos num poço de
dissonâncias cognitivas que são tortura para o cérebro.
A solução
encontrada pela evolução foi a mais simples possível: pare de fazer perguntas,
considere que você já sabe tudo o que é necessário saber, e aja. Se seus
instintos estiverem bem calibrados, suas chances de sobreviver serão maiores do
que as de morrer e você conseguirá passar seus genes sabichões para a
posteridade.
Com isso,
voltamos a um paradoxo que é nosso velho conhecido: se somos tão rasos -mesmo
que pensemos que não somos-, como conseguimos enviar o homem à Lua, criar
instituições políticas razoavelmente funcionais -em alguns países, pelo menos-
e produzir latrinas que funcionam?
De novo, a
resposta está na ação coletiva. Como dizem Sloman e Fernbach, ‘nossos crânios
podem delimitar a fronteira de nossos cérebros, mas não a de nosso
conhecimento. A mente se estende para além do cérebro, para incluir o corpo, o
ambiente e outras pessoas’.
Nós vivemos
numa comunidade de conhecimento. Como coletividade, conseguimos armazenar uma
quantidade impressionante de conhecimentos, que depositamos em livros, grupos
de especialistas e nos próprios objetos -você não precisa saber física para
acionar a descarga. Melhor, sua vida poderá ser salva por antibióticos mesmo
que você não acredite em micróbios.
Especialistas
Kahneman, no
já mencionado ‘Rápido e Devagar’, descreve o interessantíssimo debate entre o
também já mencionado Paul Slovic, psicólogo especializado em percepção do
risco, e Cass Sunstein, jurista convertido em economista comportamental.
Slovic não
confia muito em especialistas. Diz que eles padecem dos mesmos vieses dos
leigos, mas têm uma capacidade infinitamente maior de enrolar as pessoas.
Para ele, a
própria noção de risco objetivo nada tem objetivo. O perigo associado à
poluição, por exemplo, deve ser expresso em mortes por milhão de habitantes ou
em mortes por milhão de dólares produzidos? A reação do público a cada uma
dessas informações é bastante diferente.
Segundo
Slovic, não existe resposta certa aqui, e o senso comum acaba sendo um juiz até
mais competente do que os experts.
Sunstein
adota posição pró-ciência. Para ele, apenas reagir com o cérebro emocional às
notícias de jornal leva a resultados no mais das vezes negativos. Um exemplo: o
excesso de mortes em acidentes automobilísticos entre americanos que trocaram o
avião pelo carro por medo de ataques terroristas -2.300 óbitos, segundo
exercício estatístico de Garrick Blalock- não fica tão distante do de mortes
contadas no 11 de Setembro -2.996.
Nessa
polêmica, Sunstein acaba de ganhar um aliado. Trata-se de Thomas Nichols, autor de ‘The Death of Expertise’ ,
Oxford University Press, 272
págs., R$ 72,03; R$ 46,89 em e-book ‘A Morte da Expertise’. O sovietólogo,
professor do Naval War College
e de Harvard, denuncia uma tendência anti-intelectualista que vem surgindo nos
EUA –e no restante do mundo– e se insurge contra ela.
Para
Nichols, vivemos tempos paradoxais. O conhecimento nunca foi tão fácil. A
quantidade de informações reunidas na internet e à disposição de qualquer um
que tenha um computador não tem precedentes na história da humanidade. Isso, ao
lado da proporção cada vez maior de pessoas que passaram por um curso superior,
trouxe inequívocos ganhos sociais.
Não
obstante, afirma o autor de ‘The Death
of Expertise’, nós nos vemos em meio a uma onda
antirracionalista que ameaça destruir o conhecimento especializado e, com ele,
a própria democracia.
Os Estados
Unidos devem intervir militarmente na Ucrânia? Apesar das consequências
potencialmente catastróficas de uma aventura como essa, uma parcela dos
americanos acha que sim. E quem são esses espíritos belicosos? Demonstraram
maior apoio à intervenção justamente os cidadãos que mais erraram ao localizar
a Ucrânia num mapa-múndi.
Tempos
Perigosos
‘Posto de
outro modo, pessoas que pensavam que a Ucrânia se localizava na América Latina
ou na Austrália eram as mais entusiásticas em relação ao uso da força pelos
Estados Unidos. São tempos perigosos. Nunca tantos tiveram acesso a tanto
conhecimento e se mostraram tão resistentes a aprender alguma coisa’, escreve
Nichols, que dedica o restante do livro a mostrar os vários modos pelos quais
uma combinação de narcisismo arrogante com ideias igualitárias meio fora de
lugar está minando o lugar do saber especializado.
Não faltam
exemplos disso: movimentos ‘culturais’ se insurgem contra a vacinação de
crianças e a pasteurização do leite; um presidente africano acha que a Aids não
pode ser provocada por um vírus e atrasa em vários anos programas que poderiam
ter salvado milhares de vidas em seu país.
O resultado,
sustenta o autor, é um certo desprezo não só pelo especialista como também pela
educação, o que vem enfraquecendo as bases da democracia representativa. Em vez
de um público informado pronto a dialogar e forjar soluções políticas para os
problemas, encontramos um mundo de pós-verdades no qual tribos histéricas estão
prontas a se digladiar umas com as outras ao primeiro sinal de desconforto
emocional.
Nichols
levanta hipóteses interessantes para explicar os mecanismos que estão operando
para promover essa rejeição da ciência. Sobra para todo mundo. Levam cacetadas
a internet, as universidades, a imprensa e, é claro, os próprios especialistas.
É possível e
até provável que Nichols pinte sua tese central com tintas excessivamente
dramáticas, mas acho que ele esbarrou num fenômeno real, crescente e que merece
nossa atenção.
Afinal, se
há algo que o fervilhante ramo da ciência cognitiva mostra, é que o saber é uma
empreitada coletiva que, mesmo desprezada, tem resultados impactantes em nossas
vidas.
Texto: Hélio Schwartsman, 52,
bacharel em filosofia, é colunista da Folha e autor de ‘Pensando Bem...’ , Editora
Contexto
(JA, Set17)