Circula pela internet, num número alarmante de páginas, uma história
sobre a origem da cachaça – e das palavras aguardente e pinga – que exala um
bafo de falsidade perceptível a quilômetros de distância. Desmascará-la é um
serviço de utilidade pública, e não apenas em nome da etimologia. Temo que seu
sucesso se deva tanto à ignorância sobre questões de linguagem quanto – o que é
muito pior – ao apelo insidioso de uma visão do Brasil que tem raízes no velho
paternalismo racista da casa grande diante da senzala.
Vamos à lenda:
“Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente, era a cachaça já formada que pingava, por isso o nome (PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de ÁGUA ARDENTE. Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo. Hoje, como todos sabem, a AGUARDENTE é símbolo nacional!”
Além de ridículo, o textinho é apócrifo. A maioria das páginas em que
aparece o atribuem ao Museu do Homem do Nordeste, do Recife, mas isso é mais
uma de suas mentiras, como já esclareceu num fórum internético, anos atrás, a
coordenadora geral da instituição, Vânia Brayner: ‘Caros, sinto informar-lhes
que esta história nunca foi contada pelo Museu do Homem do Nordeste, em nenhum
de seus escritos, exposições ou qualquer documento do Museu. Nós, que fazemos o
Museu do Homem do Nordeste, estamos numa verdadeira saga na internet tentando
descobrir de onde saiu essa história… do Museu, tenham certeza, não foi’.
Comecemos pelas inconsistências históricas. A aguardente (coisa e
palavra) já existia quando se começou a fabricar cachaça no Brasil. A data precisa
é incerta, mas, embora a destilação já fosse conhecida na antiguidade,
pesquisas situam o início da destilação de álcool em torno do século XII. Se
havia a ‘aqua vitae’, ‘água da vida’, como os alquimistas a chamavam, a palavra
aguardente não ficava muito atrás: por mais que se aprecie a contribuição
nacional a tal cultura, o fato é que seu surgimento deve tanto à cana-de-açúcar
quanto a invenção da televisão deve a Roberto Marinho.
Os primeiros registros do vocábulo aguardente em português datam do século
XV, antes de Cabral pisar aqui. Em espanhol, ‘aguardiente’ era termo usado desde 1406. Até hoje
um dicionário como o da Academia das Ciências de Lisboa informa que essa bebida
é obtida pela ‘destilação do vinho, do bagaço de uvas, de cereais, ou de outro
produto vegetal doce’. Nossa cana não ganha nem citação nominal, ofuscada pela
bagaceira.
O latim medieval ‘aqua vitae’, que teve descendentes em diversos idiomas, pode ter
tido uma participação na formação do vocábulo, mas o sentido literal de
aguardente está mais próximo do holandês vuurwater, ‘água de fogo’. O fato é que a
ligação entre álcool e água aparece em inúmeras culturas (vodca e uísque também
compartilham essa ideia), o que torna difícil dizer como começou.
Já a pinga, outra palavra cuja etimologia o texto finge iluminar, surgiu
muito tempo depois, registrada pela primeira vez em 1813. A princípio tinha a
acepção de ‘gole, trago’ – por meio da ideia de algo que apenas se pinga no
copo, em pequeno volume – e só depois, por extensão, virou sinônimo de cachaça.
(Curiosamente, a etimologia da própria palavra cachaça, termo existente
desde o século XVII, destaca-se nessa bobajada pela ausência, o que é um bom
pretexto para passarmos ao largo dela: uma das mais obscuras de nossa língua, o
cipoal de teses antagônicas que os estudiosos lhe dedicam precisaria de uma
coluna à parte para começar a ser enfrentado.)
Expostos os erros históricos, é fácil perceber no textinho em questão
aquele rebuscamento desnecessário que costuma denunciar a etimologia
fantasiosa. Se a aguardente arde na garganta, e como arde, por que imaginá-la
irritando feridas abertas por chicotadas? Se a pingamos no copo, por que
descrevê-la pingando do teto após uma estranhíssima evaporação acidental?
Simples: porque assim temos um retrato perverso do Brasil, essa terra
inocente onde a aguardente foi descoberta por puro acaso, como se o mundo
tivesse acabado de começar, e onde os escravos preguiçosos, desleixados,
trapaceiros e – claro – cachaceiros compensavam tantos defeitos com sua
musicalidade inata de bons selvagens: ai, que “vontade de dançar”!
Vai ser difícil tirar dessa aí o título de lenda etimológica mais idiota
de todos os tempos.
Texto: Sergio Rodrigues, Sobre Palavras
Imagem: ‘Engenho de Cana’, de Benedito Calixto,
baseado em desenho original de Hercules Florence