“Atenção, pais e educadores: música
não é um deleite ocioso de aristocratas. Música é parte da formação da
cidadania e elemento estruturante do pensamento. Aprender sobre notas e
melodias não é detalhe ou firula de formação. Sem música não é possível
construir pessoas equilibradas e inteligentes. Alfabetizou seu filho nas
letras? Parabéns! Falta alfabetizá-lo em
duas linguagens extraordinárias: a musical e a artística. Ler letras é parte
das habilidades essenciais para existir no mundo. Ler sons e imagens constitui
outras facetas do equilíbrio do homem pleno.
Há famílias de estilo dos Von Trapp da 'Noviça Rebelde' ('The Sound of
Music'). Nasceram cantando e tocando. O filme dá uma resposta a uma questão
importante: como começar a educação musical de alguém? A doce Maria toca ao
violão a música para ensinar notas e alegria. Cada nota é associada a uma ideia
boa. Acima de tudo, o começo deve ser a sedução da alegria.
Qual instrumento? Difícil responder. Flauta doce é boa para iniciação
musical. Canto é excelente. Mas, antes de tocar ou cantar, a criança deve
ouvir. Ouvir boas músicas com os pais. O lúdico atrai. O 'Carnaval dos
Animais', de Camille Saint- Saëns, ajuda muito. Colocar a música para a criança
e pedir que ela adivinhe qual animal está sendo descrito. Sinestesia pura!
Oferecer imagens de animais e pedir que a criança encontre o cisne, o leão, o
elefante, os fósseis, enquanto ouve.
Um pai, mãe ou educador dedicando tempo a uma criança será uma lição
inesquecível. Funciona também com o 'Trenzinho Caipira' de Villa-Lobos.
Melodias fáceis e marcantes como as de Mozart são bons começos.
Até aqui citei música erudita. Seria um erro supor que a educação musical
só tenha esse recorte. Música existe em planos muito mais amplos. Cantigas de
roda seduzem crianças. Nossa MPB está repleta de criações para seduzir crianças
e jovens. O samba, com seu compasso marcado, traz um pouco do ritmo do coração
ao nosso ouvido, o primeiro som que ouvimos ainda no útero materno.
Temos poucas ofertas, mas um concerto didático para crianças é um
privilégio imperdível. Se alguém explica ao público como funciona cada
instrumento, como tocam individualmente e como dialogam em conjunto, verá olhos
brilhantes acompanhando a explicação.
Aprender música estimula a concentração. No início, alguns minutos e,
pouco a pouco, aumentando o tempo de estudo.
Nosso crescente déficit de atenção (estimulado pela tecnologia) pode ser
atenuado com a música. Atribuo grande parte da minha capacidade de concentração
na leitura aos anos de piano. Tocar uma invenção a três vozes de Bach, marcando
cada nova melodia e sua entrada, mudou minha maneira de perceber um texto
também. Sem Bach, não conseguiria entender padre Vieira.
Aprender música estimula a combinação de muitas coisas entre os dois
hemisférios do cérebro. Música implica matemática e pensamento lógico de
compasso. Música estimula concentração. Tocar algo traduz emoção e sensibilidade.
Para executar uma partitura, demanda-se coordenação motora envolvendo mão esquerda
e direita, olhar, movimentos de braço e, dependendo do instrumento, boca e
pernas. O corpo fala com o instrumento, o cérebro se envolve, a consciência
dança e você se alegra e se expressa. A música transforma.
Multiplicar as fontes garante uma chance de influência. Caixinhas de
música hipnotizam crianças. Escutar junto reforça o aprendizado. Quando
possível, ter instrumentos musicais em casa. Levar a concertos. Cantar muito.
Deixar claro que há músicas tristes, alegres, dançantes, selvagens, elegíacas,
sensuais: a música está em todos os matizes da alma humana. Música para rir e
para chorar, música para celebrar e para se recolher. Sons que me abrem para o
mundo e, por vezes, música que impede que eu fique devassado pelos ruídos
excessivos dos outros. Podemos estar com o carro da vida veloz ou lento. As
notas sempre asfaltarão a estrada.
A diferença entre remédio e veneno está na dose. Velho e fundamental
preceito médico. Leve uma criança a uma ópera de Wagner em alemão por cinco
horas com uma valquíria de capacete com chifres cavalgando e você terá
estimulado um musical-hater infantil. Você conhece seu filho ou seu aluno. Quer
introduzir ópera? Uma ária explicada previamente e curta pode ser uma chance.
Que tal o belíssimo coro do 'Va Pensiero' da ópera 'Nabuco', de Verdi? Fala de
saudade e de vontade de voltar para casa. Mais vibrante? Indico o canto cheio
de ódio da Rainha da Noite na 'Flauta Mágica', de Mozart (Der Hölle Rache).
Romântico e lúdico? Que tal cenas do 'Quebra-Nozes' de Tchaikovsky? Cinco
minutos, sem peso formal de aula, alegres e analisando o efeito. Os olhos da
criança dirão se é hora de mudar, adensar ou tornar mais leve o remédio.
Mostre os estilos variados. Não trabalhe com preconceito musical. Poucas
coisas são tão vibrantes como uma bateria de escola de samba entrando na
avenida. A voz de Elis Regina comove até as pedras. O coro final da Nona
Sinfonia de Beethoven é de parar o planeta. Um venerando senhor marcando o
compasso numa caixinha de fósforos, como um dia vi na Lapa, no Rio de Janeiro,
é algo hipnótico. O mundo é cheio de ‘som e de fúria’. Privar seu filho disso
tudo é condená-lo a uma surdez estranha e a uma deficiência deliberada. Ele
precisa ouvir para viver mais e ser feliz!"
Texto:
Leandro Karmal
(JA, Set17)