Intelectuais da USP comparam bolsonarismo ao movimento integralista da década de 1930
Professores da área de
humanas da USP argumentam que a extrema direita brasileira atualiza, com
particularidades históricas, discursos e estratégias da tradição fascista do
país - visíveis no fundamentalismo religioso, na defesa da família patriarcal,
e no culto à violência, que remonta ao integralismo liderado por Plínio
Salgado.
A proposta presidencial, na
reunião ministerial gravada em 22 de abril, de armar a população para a defesa
daquilo que Jair Bolsonaro chama de ‘liberdade’; as agressões físicas e as
tentativas de intimidação a jornalistas e a membros do Supremo Tribunal Federal
(STF); o acampamento dos 300 do Brasil em Brasília -um grupo armado
bolsonarista, segundo o Ministério Público do Distrito Federal; e a propalada
ligação do bolsonarismo com as milícias, são fatos que deram urgência à
pergunta sobre se estamos diante de uma ascensão fascista no país.
Não existe um consenso entre
estudiosos sobre a definição de fascismo. Em parte, a dificuldade vem da
própria natureza do fenômeno, que escapa a identificações fáceis. O fascismo
foi reacionário e revolucionário; buscou a tradição, mas admirava a tecnologia;
pregava a ordem por meio da rebelião; apresentava-se contra o sistema, mas
tinha fortes ligações com as elites; falava em povo, apesar de ser
profundamente autoritário e de sufocar qualquer crítica à liderança.
Como argumenta o historiador
Robert Paxton, talvez seja melhor guiar-se pela estrutura das paixões que
caracterizaram o fascismo. Algumas delas foram o culto à violência e ao
militarismo; a crença de que a salvação da pátria requer a eliminação dos inimigos
internos por meio da mobilização permanente; o uso da identidade nacional
através de uma concepção imunitária e agressiva de corpo social. Unindo tudo, a
obediência ao líder, percebido como uma encarnação da vontade nacional.
Presidente Jair Bolsonaro cavalga em frente a manifestantes em apoio ao governo |
Não se pretende enfrentar
aqui a complicada e necessária discussão acadêmica sobre o caráter do fascismo
em geral, que foge ao escopo de um artigo voltado para os temas urgentes da
conjuntura brasileira. Deseja-se, antes, lembrar que o bolsonarismo ressoa
discursos e estratégias de uma velha tradição fascista local, cuja atualização,
nos parece, ajuda a explicar o que está acontecendo.
A AIB (Ação Integralista
Brasileira), liderada por Plínio Salgado, formada em 1932, no contexto dos
efeitos da Grande Depressão, constituiu uma importante iniciativa fascista. No
seu auge, chegou a ter ao redor de um milhão de aderentes. Em 1938, após um
fracassado golpe armado contra o Estado Novo varguista, a AIB se desintegraria,
levando Plínio Salgado para o exílio em Portugal.
O líder integralista voltaria
ao Brasil em 1946 para assumir a presidência do PRP (Partido de Representação
Popular), agremiação que daria roupagem pseudodemocrática ao integralismo no
contexto da democracia do pós-guerra. Após o golpe militar de 1964, o PRP seria
extinto, dessa vez com a decretação do AI-2 por Castelo Branco.
A filiação de Plínio Salgado
e de seus seguidores mais fiéis ao partido pró-ditadura (Arena) acabaria por
dispersar os herdeiros da AIB, tendência reforçada pela morte do líder
integralista em 1975.
Os integralistas enxergavam a
nação como um organismo em estado de profunda crise, ameaçada em sua unidade e
ferida de morte pela corrupção oligárquica, e por graves conflitos estaduais.
Para os seguidores de Plínio Salgado, a nação também sangrava em função do
materialismo, e da insensibilidade dos liberais. Se ideologias radicais ateias
e internacionalistas vingassem, alertavam os membros da AIB, isso representaria
a própria morte do corpo social: a escravização do Brasil frente ao movimento
comunista planetário.
Para salvar a nação, os
integralistas defendiam o desmantelamento da democracia liberal, e a construção
de um ‘Estado orgânico’, baseado em representações corporativas (classes e
grupos de interesse), e intermediadas por uma liderança incontestável —o ‘chefe
nacional’.
Ação Integralista Brasileira, movimento fascista e anticomunista, fundado por Plínio Salgado, em 1932, SP |
A corrupção oligárquica, o
separatismo, o materialismo burguês, a desordem e os conflitos de classe
representariam um repúdio profundo aos valores fundamentais e imutáveis da ‘alma
brasileira’, entre os quais ‘os princípios eternos da religião do povo’ e o ‘sentimento
da família e dos deveres para com ela’.
Como se vê, a religião cristã
e a família constituíam os pilares do projeto fascista brasileiro nos anos
1930. A partir da família patriarcal se ergueriam as bases da ‘família
brasileira’, imersa nos princípios atemporais do cristianismo. Não à toa, o
lema integralista era ‘Deus, Pátria, Família’. Colocava-se a pátria no meio dos
dois sustentáculos da alma nacional - Deus e família - exatamente porque ela
constituía, nos termos de Plínio Salgado, a ‘síntese do Estado e da nação’.
Há paralelismos na retórica
de integralistas e bolsonaristas. A retomada da religião cristã - agora em versão
neopentecostal -, da família e da pátria, parece servir para rearticular um
núcleo fascistizante de longa data na sociedade brasileira. É notória a relação
existente entre Bolsonaro e parte dos líderes evangélicos. Uma aliança que
repercute na popularidade de Bolsonaro entre os fiéis, assim como na adesão da
chamada bancada da Bíblia aos projetos do governo federal.
A proximidade de Bolsonaro
com um tipo de fundamentalismo religioso permite sublinhar a contraposição, tão
cara às milícias virtuais alinhadas ao presidente, entre o ‘vagabundo’ e o ‘pai
de família’. Essa polaridade revela a intenção das hostes bolsonaristas de
purificar violentamente a nação de seus ‘inimigos’.
Tal como o bordão deixa claro
(‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’), a saída para acabar com a
sangria do país, causada pela corrupção, crise na segurança pública e avanço do
globalismo comunista, envolve colocar uma suposta homogeneidade nacional acima
de quaisquer outras identidades e compromissos, respeitando seu pilar fundamental
- a religião cristã, algo que vai ao encontro das tradições do fascismo à
brasileira.
O manifesto da ‘Aliança pelo
Brasil’, partido em construção por Bolsonaro, afirma que o primeiro e mais
importante objetivo da nova agremiação política será o de ‘respeitar Deus e a
religião’, reconhecendo ‘o lugar de Deus na vida, na história e na alma do povo
brasileiro’.
Senador Flávio Bolsonaro acompanha pai, Presidente Jair Bolsonaro, em evento de lançamento do partido Aliança pelo Brasil, Brasília |
Segundo o manifesto, o
brasileiro caracteriza-se por ser um povo ‘religioso e solidamente educado nas
bases do cristianismo’. Mais do que isso: haveria no Brasil um verdadeiro
amálgama entre Deus e nação, uma vez que esta última teria sido fundada sob a
cruz (‘Terra de Santa Cruz’), portanto alfabetizada e educada, desde o início,
segundo o primado da religião cristã.
O mesmo manifesto da Aliança
pelo Brasil caracteriza a família como ‘núcleo natural e fundamental da
sociedade’. Trata-se, logicamente, de um tipo particular de família:
patriarcal, monogâmica, heteronormativa e baseada em rígidos estereótipos de
gênero.
Comportamentos e relações que
se afastam desse padrão - de relações homo afetivas a estruturas familiares
alternativas ao paradigma nuclear - não constituem meras questões de
pluralidade afetiva, mas temas de segurança nacional (‘chaga ideológica de
nosso país’, diz o manifesto), sobre os quais o Estado, principalmente por meio
de políticas educacionais e culturais, deve dedicar especial atenção.
A família também ocupa lugar
decisivo no discurso de Bolsonaro, tanto porque se encontraria genericamente em
perigo, quanto pelo fato de que a sua família, constitui um valor tão supremo,
que se impõe ostensivamente a decisões políticas.
A família cristã é ainda um
espaço pretensamente idílico, em que lugares de autoridade não estariam em
conflito, e divisões sociais de gênero não seriam questionadas. Em meio a uma
sociedade antagônica, espera-se que a família cristã imponha a paz de uma ordem
natural e, por isso, supostamente inquestionável do ponto de vista moral.
Os deslizes de estilo, as
alterações de tom, as inadequações de vocabulário, tornam-se, no interior do
sistema de linguagem, a prova e a marca de autenticidade de Bolsonaro, criada
pela dissolução da fronteira entre público e privado. É a linguagem de um pai
que fala com a sua família, tomado pela cólera da impotência, revertida em
delírio de perseguição, cujo objeto flutuante vai da imprensa às universidades,
e aos padrões não heteronormativos, calcado em neologismos como esquerdopata e
gaysista.
Quanto à pátria, o assunto é
mais complicado. O integralismo não só era crítico ao crescente controle da
economia pelo ‘estrangeiro’ —subordinador da pátria ‘às oscilações caprichosas
de Londres e depois de Nova York’, nas palavras de Salgado—, como defendia a
necessidade de forte intervenção do Estado na economia, coordenando a produção
aos objetivos nacionais, e protegendo os mais frágeis dos ‘abusos do
capitalismo’.
Como sabemos, o bolsonarismo
defende o contrário: se apresenta estranhamente submisso a outro país - no
caso, aos Estados Unidos. O ideólogo máximo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho,
vê no trumpismo a trincheira final da defesa da nação contra as garras do
globalismo comunista - justificando, assim, o apoio de Bolsonaro a Donald
Trump. Ao mesmo tempo, Bolsonaro vem aprofundando a agenda neoliberal, e
desmontando o Estado, o que deixa os mais vulneráveis crescentemente
desamparados frente ao mercado.
Apesar de invulgar quando
considerado do ponto de vista histórico, porque inverte o sentimento de
proteção que liga as massas ao líder nas experiências clássicas, o script
bolsonarista parecia caminhar relativamente bem, até a eclosão da pandemia.
As assim chamadas reformas
estruturais, em sua maioria destinadas a flexibilizar o mercado, retirando
direitos e garantias sociais consagrados na Constituição Federal de 1988, iam
sendo efetivadas e socialmente aceitas; até porque faziam coro com a ideia da
meritocracia, que já grassava há algum tempo dentre os setores médios, e que a
ascensão do pentecostalismo, com sua teologia da prosperidade, ia ajudando a
difundir junto aos pobres.
O fato é que, aclimatada a um
país periférico, e em tempos ainda de hegemonia neoliberal, mesmo que
decadente, a exortação à nação servia para convalidar uma política econômica
ultraliberal e de destruição planejada da capacidade de intervenção do Estado,
o que claramente a contradiz. Como não faria nenhum sentido o ‘make Brazil
great again’, fica o ‘Brasil acima de tudo’, mas abaixo dos Estados Unidos.
Esse traço não estava
presente na experiência pretérita do integralismo, entre outras razões, porque
o momento histórico era outro. Vivia-se um período em que não só as classes
médias - de onde provinham os quadros intelectuais mais importantes do integralismo,
mas parte significativa das próprias elites econômicas mostravam-se bem mais
dispostas a apostar, e agir, pela construção, no Brasil, de um Estado nacional
com relativa força.
Jair Bolsonaro acompanhado do ministro Paulo Guedes, e de diversos empresários, na saída do STF |
Um fascismo ultraliberal como
o de Bolsonaro seria viável? Até que ponto um movimento com essas
características pode ser considerado fascista? É verdade que a maior parte das
experiências historicamente identificadas como fascistas não foram
economicamente liberais, bem ao contrário, mas isso não quer dizer que exista
uma relação unívoca entre fascismo e estatismo.
Ludwig von Mises, no final
dos anos 1920, exaltava as virtudes do líder dos camisas pretas italianos pelo
resgate que este promovera do princípio da propriedade privada. O próprio
Mussolini iniciou seu governo nos anos 1920 com o economista liberal Alberto De
Stefani à frente do Ministério da Fazenda, concentrando-se inicialmente em
realizar políticas de livre-comércio, redução de impostos, privatizações e
cortes de gastos e empregos públicos.
Foi somente durante a Grande
Depressão dos anos 1930 que o governo fascista passou a investir em obras
públicas para a geração de empregos, e na socialização dos prejuízos de setores
industriais.
Ainda que o ultraliberalismo
econômico não sirva para descaracterizar o bolsonarismo como movimento
fascista, é indubitável que a ideologia do Estado mínimo de Paulo Guedes
distingue substancialmente o atual momento do fascismo brasileiro daquele dos
anos 1930.
No entanto, mesmo
considerando as diferenças, o bolsonarismo está muito mais próximo das marcas
características do integralismo do que da tradicional direita conservadora
brasileira, pela simples razão de que ambos, bolsonarismo e integralismo,
representam um fenômeno mobilizador, que vem de baixo para cima.
Nos termos da historiadora
Sandra Deutsch, os conservadores visam, sobretudo, manter uma ordem considerada
em dissolução; os reacionários vão além, buscando conservar, mas também
restaurar um passado mítico. Conservadores e reacionários podem até pregar vias
autoritárias para atingir seus objetivos, mas não há neles, como há no
fascismo, a pulsão mobilizadora de massas e do culto à violência, profundamente
desumanizadora do ‘outro’, configurado como uma mácula de grupo, tornando-o
alvo de extermínio literal.
Congressistas favoráveis ao impeachment comemoram a abertura do processo contra Dilma |
Quando, em 2015-2016, as
elites tradicionais voltaram a se unir para derrubar o lulismo, fizeram-no de
forma puramente restritiva, com o intuito de esvaziar o conteúdo social da
Constituição de 1988. Pelejando para transformar a democracia em um mero arremedo
oligárquico sem disfarce, o establishment social e econômico parecia então ter
desistido de oferecer ao país uma alternativa crível.
É no vácuo deixado pelas
forças tradicionais de direita que se compreende a possível retomada do
fascismo à brasileira. Mesmo tendo sido oportunisticamente atiçado, no início,
por uma oposição sem força eleitoral suficiente para derrotar a esquerda nas
urnas, o bolsonarismo acabou libertando-se da tutela conservadora.
Eis a novidade: pela primeira
vez na história do Brasil republicano, um autoritarismo vindo de baixo para
cima não teve seu voo interceptado no meio do caminho por uma alternativa
conjurada pelas elites, como se deu com Getúlio Vargas nos anos 1930, e com o
golpe de 1964.
Na conjuntura 2015-2018, o
bolsonarismo não apenas credenciou-se para exprimir, a seu modo, a raiva
plebeia contra a destrutiva estagnação econômica, como também capitalizou para
si, pelo menos em parte, a gradual corrosão da legitimidade dos que ocupavam e
ocupam as posições altas do Estado e da sociedade, em sua patente incapacidade
para estender, contra a penúria material e a insegurança crescente, o manto
protetor das estruturas que comandam.
Nesse sentido, a extrema
direita soube se aproveitar do impulso antinstitucional, desperto pelas
manifestações de 2013, com suas tópicas de antirrepresentação política, e
refratária aos modelos de governabilidade característicos da democracia
pós-Constituição de 1988. De modo análogo às experiências clássicas, o fascismo
à brasileira surfou nessa onda, apresentando-se como uma força que repudiava o
jogo institucional predominante na vida política do país.
Cavalgando, assim, o corcel
antissistêmico, Bolsonaro reatou o fio perdido do fascismo brasileiro com a
energia que emergiu em junho de 2013, potencializada pela Operação Lava Jato.
Depois de 40 anos de silêncio, o movimento bolsonarista resgatou grupos como
TFP (Tradição, Família e Propriedade), as bases do janismo e do malufismo da
década de 1980, caracterizadas pelo sociólogo Flávio Pierucci como protofascistas,
e políticos como Enéas Carneiro, que no primeiro turno da eleição presidencial
de 1994 chegou a ter 7,4% dos votos.
Manifestantes em ato de apoio à Lava Jato, em frente ao Congresso Nacional |
Diferentemente dos
integralistas e seus camisas-verdes, os bolsonaristas ainda não têm uma
estrutura paramilitar organizada, mas conexões com as milícias policiais, e a
normalização de ‘camisas-pardas’ pró-Bolsonaro em espaços públicos apontam para
este caminho: a sedimentação do apoio de massa a uma ideologia e movimento
fascista à brasileira, com o cortejo de horrores que sempre traz consigo.
Parte da história moderna do
país, e um dos subprodutos de suas fundas mazelas, o fascismo à brasileira
sempre esteve por aí, com seu rosto e gestos ameaçadores, ainda que, em geral,
perambulando nas margens da vida nacional.
Agora, contudo, galgou um dos
centros decisórios do Estado brasileiro, o que significa que a velha ameaça
logrou dar um alarmante salto de qualidade. É tarefa número um de todos os
democratas não só impedir que ela se consume, mas fazê-la regredir ao espaço
marginal de onde nunca deveria ter saído.
Fonte: André Singer é professor titular do Departamento de
Ciência Política da USP; Christian Dunker é professor titular do Instituto de
Psicologia da USP; Cicero Araújo é professor titular do Departamento de Ciência
Política da USP; Felipe Loureiro é professor associado do Instituto de Relações
Internacionais da USP; Laura Carvalho é professora associada do Departamento de
Economia da USP; Leda Paulani é professora titular do Departamento de Economia
da USP; Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da USP; Vladimir
Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP |
FSP
(JA, Jun20)