Dificuldade
de lidar com a solidão é um enorme desafio nestes dias de distanciamento social
Depressão é transtorno
traiçoeiro que transforma a vida num fardo difícil de suportar.
Mesmo antes do coronavírus,
já era considerada ‘o mal do século’. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a
partir desta década, será a principal causa de absenteísmo, isto é, faltas no
trabalho. Já o é, entre os que trabalham no mercado financeiro de São Paulo.
Parece paradoxal, porque a
partir da Segunda Guerra centenas de milhões de pessoas tiveram acesso a
alimentos de qualidade, serviços de saúde e níveis de conforto com os quais
nossos antepassados não ousavam sonhar.
Embora a pobreza possa
aumentar a prevalência de pessoas deprimidas nas sociedades, por que razões
tantos que desfrutam de melhores condições financeiras desenvolvem um
transtorno que lhes subtrai o prazer de viver?
Nas últimas décadas, a ênfase
foi dada à biologia dos neurotransmissores, os sinais químicos que os neurônios
trocam nas sinapses. A descrição das alterações na produção, na concentração e
nas atividades desses mediadores envolvidos na fisiopatologia da doença levaram
às sínteses de medicamentos antidepressivos para corrigir os desequilíbrios
neuroquímicos associados a ela.
A despeito desses avanços,
desarranjos na ‘química cerebral’ não são suficientes para explicar o
crescimento dessa prevalência na sociedade moderna. Sem invadir a seara dos
especialistas, tomo a liberdade de enumerar dois dos fatores que talvez nos
ajudem a entender.
O primeiro tem raízes
evolutivas. Nossos antepassados mais remotos desceram das árvores, nas savanas
da África, há cerca de 6 milhões de anos. Naqueles tempos, tínhamos perto de um
metro de altura e quase nenhuma gordura no corpo, dada a dificuldade de obter
alimentos. Qual a chance de sobrevivência de um primata tão franzino, no meio
das feras que o espreitavam dia e noite?
A solução foi formar bandos.
O agrupamento foi essencial à sobrevivência dos ancestrais do Homo sapiens,
aqueles incapazes de organizar coalizões não deixaram descendentes. Desde
então, a sensação de isolamento nos torna tão frágeis, que mal conseguimos suportar
um sábado à noite, sozinhos, em casa.
Até a metade do século
passado - um milionésimo de segundo em 6 milhões de anos - vivíamos em famílias
numerosas, que nasciam e se mantinham nos mesmos grupos, nas mesmas tribos, ou
em casas próximas, pelo resto da vida. De uma hora para outra, o progresso, e a
complexidade dos centros urbanos, nos afastou uns dos outros. A solidão se
tornou endêmica.
O segundo, é a busca
incessante da felicidade em ações, ambientes, e relacionamentos que nos
distanciam dela.
Desperdiçamos energia para
adquirir status, bens, galgar posições sociais, e exibir no Instagram e no
Facebook fotos e comentários fúteis, para mostrar aos nossos seguidores como
somos inteligentes, espirituosos, importantes e, sobretudo, felizes.
Superação, palavra
insuportavelmente na moda, virou o mandamento supremo. Nada mais justifica a
tristeza e o fracasso, a ordem é triunfar o tempo todo, para não sermos
acusados de fracos, deprimidos e perdedores, portanto desprezíveis.
A expectativa de uma
existência cor-de-rosa não estava no horizonte dos nossos antepassados,
ocupados com o ganha-pão, as doenças, as guerras e as epidemias de fome.
A tecnologia que nos trouxe
computadores, celulares, e a internet foi a pá de cal. Entretidos com as telas
dos telefones perdemos contato com os familiares, e os amigos. O trabalho
derrubou as fronteiras entre o escritório e a privacidade de nossas casas. Onde
quer que estejamos, seremos bombardeados por mensagens de e-mail, WhatsApp,
Instagram, Twitter, e o diabo que nos carregue.
A seleção natural não
preparou o cérebro para lidar com tamanha variedade de estímulos e solicitações
concomitantes. A incapacidade de atender à demanda gera sensação de
incompetência, frustração, e estresse.
A vida moderna se transformou
numa engrenagem impiedosa, que nos afasta dos valores essenciais à condição
humana.
A dificuldade de lidar com a
solidão é um enorme desafio nestes dias de distanciamento social. Manter o
equilíbrio psicológico dentro de limites razoáveis, trancados em casa,
amedrontados pelo vírus, longe das pessoas de quem gostamos, é privilégio de
poucos.
A depressão, e os transtornos
de ansiedade, deixarão sequelas mais duradouras do que a passagem do vírus.
Fonte: Drauzio Varella, médico cancerologista, autor de ‘Estação
Carandiru’ | FSP
(JA, Jun20)