Dinheiro, Tecnologia e Poder
“A Operação Lava-Jato foi além do desmanche do maior
esquema de corrupção já desvendado no Brasil.
Fez ruir um projeto continental de poder que uniu o PT, a Odebrecht e
outras empreiteiras no financiamento de campanhas políticas de esquerda e
investimentos bilionários em Cuba.
Fui testemunha do nascimento deste projeto em 1994, como enviado especial
do Correio Braziliense ao Uruguai e Argentina para apurar as conexões do PT com
a esquerda latino-americana para a criação de uma multinacional da política no
continente com o nome fantasia de Foro de
São Paulo.
A entidade foi viabilizada pelo ex-secretário de Relações Internacionais
do PT, Marco Aurélio Garcia, morto em 20 de julho, embora a fama pelo
empreendimento tenha ficado com Lula.
A meta do Foro, criado em junho de 1990, era combater o neoliberalismo e
criar uma hegemonia partidária e ideológica na América Latina, elegendo
parlamentares e governantes.
Chamava a atenção, durante a apuração da reportagem, o profissionalismo
com que o projeto era conduzido.
A comunicação exibia unidade de linguagem, com deputados e dirigentes
sindicais de vários países afinados no mesmo discurso.
Conforme o projeto avançava e governos iam sendo conquistados, como
aconteceu no Brasil em 2002 com a eleição de Lula, surgia explosiva a mistura
de ideologia, corrupção com a ‘compra dos adversários’ — como ficou evidente no
mensalão e depois na Lava-Jato —, e
enriquecimento pessoal.
Hoje ficou comprovado que a Odebrecht funcionou como braço financeiro do
PT para viabilizar um projeto de poder com a eleição de políticos ligados ao
Foro de São Paulo. Em troca, a empreiteira reinaria absoluta, como acabou
acontecendo em vários países.
Ao desbaratar o esquema de corrupção controlado pelo PT, a Lava-Jato
lançou luz sobre o avanço do Foro de São Paulo no continente e o papel de
arrecadadora e distribuidora de dinheiro da Odebrecht, oferecendo aos parceiros
do partido marketing político de primeira linha — inicialmente com Duda
Mendonça e depois com João Santana —, plano de governo com obras caras e
assessoria para o financiamento dessas obras, muitas das quais receberam recursos
do BNDES.
Em junho de 1994, recebi um telefonema do advogado paulista José Carlos
Graça Wagner, que me deu detalhes sobre o Foro de São Paulo. Ele jurava que o
Foro, criado pelo PT, tinha a finalidade de integrar a esquerda
latino-americana e financiar a eleição de Lula e outros líderes
latino-americanos, e até africanos. Investiguei o assunto e confirmei a
história.
Marcamos uma conversa no escritório de Graça Wagner, em São Paulo, na
Alameda Canuri, 72, Indianápolis.
Anticomunista ferrenho, beirando os 70 anos, elegante, inteligente e
culto, Graça Wagner sabia tudo sobre o Foro de São Paulo: ‘Eles não querem
vencer só no Brasil, querem o poder em toda a América Latina. Pretendem financiar esse projeto com dinheiro
público’.
Deu nomes, datas e uma informação surpreendente para aquela época:
dirigentes do Foro em outros países estavam conectados com o PT de São Paulo
por uma rede internacional de computadores.
Fui para o Uruguai e consegui confirmar a história de José Carlos Graça
Wagner.
Cheguei até o deputado Jose Bayard, da Vertente Artiguista da Frente
Ampla. No seu gabinete no Congresso, havia um computador ligado em rede com São
Paulo, pelo qual se comunicava com a direção nacional do PT em tempo real. ‘Vamos ampliar isso’, garantiu o deputado. Fiquei impressionado.
Numa época em que os celulares eram uma novidade caríssima e a internet
engatinhava, uma rede privada internacional de computadores era algo no mínimo
ousado.
Apurei que os Tupamaros, movimento guerrilheiro atuante durante a
ditadura uruguaia, sabiam de onde vinha, e onde estava guardado o dinheiro do
Foro de São Paulo.
Depois de uma negociação difícil, fui avisado que me procurariam no meu
hotel.
Dois dias depois, na esquina da avenida 18 de Julio com Calle Yaguarón, por volta das 11h30, um
Citroen 2CV, com dois homens jovens me recolheu. Sentei atrás.
No caminho me explicaram que a fonte conversaria comigo num bar, mas não
poderia perguntar seu nome, anotar e nem registrar o endereço. Pediram que eu
me abaixasse naquele banco apertado. Rodaram
mais uns 10, 15 minutos. Pararam.
Havia um bar acanhado, uma portinha. Mandaram que eu entrasse e fosse até
os fundos. Entrei.
Ele estava lá. Barba de dois, três dias, óculos escuros, cara redonda,
japona de lã preta, cabelos grisalhos, gordinho. Na mesa, um solitário copo de vinho tinto. Fez
sinal. Sentei.
Foi logo falando: ‘O dinheiro deles vem de Cuba e também de doadores de
campanha aqui do Uruguai e de outros países. Eles têm uma conta em dólares no Citibank em
Montevideo. Quando precisam de dinheiro vivo, sacam e atravessam a fronteira
por Rivera, ou qualquer outro lugar por onde possam passar de carro ou a pé sem
despertar suspeitas, e sem correr o risco de serem roubados. Sempre usam seguranças quando precisam transportar
dinheiro para o Brasil. São pacotes de dólares. É tudo o que eu sei’.
Tentei argumentar, pedir mais detalhes, queria saber quem administrava a
conta, mas o homem não quis conversa: ‘É tudo o que posso dizer’.
Voltamos e fiquei no mesmo ponto da 18 de Julio. Chovia e fazia frio.
Era uma informação importante, mas impossível de ser checada, tanto que
não publiquei. Só agora, com os
resultados da Lava-Jato, decidi revelar.
Cheguei em Buenos Aires no dia 21 de julho. Nas conversas com os
argentinos, consegui aprofundar bastante a apuração.
Conversei com os deputados Graciela Fernandez Meijire e Carlos Chacho
Alvarez; Jorge Kreyness, dirigente do Partido Comunista da Argentina; e
sindicalistas como Víctor de Genaro, da Central dos Trabalhadores da Argentina.
Todos apostavam firme na eleição de Lula e na integração da esquerda
latino-americana.
Para Kreyness, o papel do Foro de São Paulo era uma frente de esquerda
organizada com ‘unidade na adversidade’.
O mais incrível é que, ao longo dos últimos 23 anos, o projeto de poder
do PT e da esquerda latino-americana, avançou sem qualquer reação dos
adversários, seja por falta de informação e capacidade de articulação, por
terem subestimado o partido e seus aliados, ou ainda porque, como revelou a
Lava-Jato, boa parte destes adversários foram comprados pelo esquema de suborno
envolvendo o mensalão, a Petrobras, financiamentos do BNDES, e outras fontes de
dinheiro público, exatamente como denunciou José Carlos Graça Wagner, morto em
2006.
Presidentes de vários países tiveram sua propaganda política, obras e
planos de governos financiados com recursos do Tesouro, empresas e bancos
públicos, numa farra de 13 anos que jogou o Brasil na pior crise econômica e
política da sua história e cujas consequências se tornaram imprevisíveis.”
(JA, Ago17)