A freira alemã, Katharina von Bora, fugiu de um convento
católico ao se identificar com as ideias protestantes de Martinho Lutero
“Em outubro
de 1517, portanto há 500 anos, o padre e teólogo alemão Martinho Lutero
publicou as suas ‘95 Teses’, uma série de afirmações com as quais contestava
práticas e interpretações da Igreja Católica. Esse é considerado, pela maioria
dos historiadores, como o marco zero da Reforma Protestante.
Lutero é o
principal líder do movimento que se espalhou por diversas partes da Europa no
século 16, e acabou por redesenhar o mapa religioso do continente, antes
predominantemente católico. Lutero ganhou apoio de religiosos que se
identificavam com suas ideias reformistas, mas também de governantes e outros
líderes políticos, muitas vezes interessados em que o papa tivesse menos poder
numa Europa ainda fragmentada, com Estados soberanos nascendo.
Algumas das teses de Lutero
24. Assim sendo, a maioria do povo é ludibriada com as
pomposas promessas do indistinto perdão, impressionando-se o homem singelo com
as penas pagas.
52. Esperar
ser salvo mediante breves de indulgência é vaidade e mentira, mesmo se o
comissário de indulgências e o próprio papa oferecessem sua alma como garantia.
79. Alegar ter a cruz de
indulgências, erguida e adornada com as armas do papa, tanto valor como a
própria cruz de Cristo é blasfêmia.
Entre tantos
apoiadores, um deles esteve presente no dia a dia de Lutero, nos últimos 20
anos da vida do teólogo. Na verdade, era uma apoiadora, chamada Katharina von
Bora, ex-freira alemã que foi casada com Lutero.
Bora nasceu
em 1499, em uma família empobrecida da nobreza alemã. Ainda criança, começou a
receber educação formal em um convento católico, onde foi alfabetizada,
aprendeu latim e música. Bora prestou votos e virou freira.
A partir das
‘95 Teses’, em 1517, os pensamentos de Lutero foram ganhando força pela Europa.
Todo o clero passou a ter contato com as ideias do teólogo alemão,
criticando-as ou apoiando-as, pois eram o grande acontecimento da Igreja na
época.
Mesmo na
clausura de um convento, Bora teve contato com as críticas de Lutero e se
identificou com elas. Junto com outras freiras também interessadas na Reforma,
conseguiu se comunicar com religiosos próximos a Lutero e, em 1523, arquitetaram uma fuga, à noite, dentro de uma
carruagem que transportava peixe.
O grupo que
ajudou as freiras a fugirem também passou a buscar pretendentes para elas —
naquela época, mulheres solteiras carregavam um forte estigma social, e tinham
poucas chances de se sustentar financeiramente.
Bora negou
pedidos de casamento, e disse que se casaria apenas com Lutero ou com Nicolau
von Amsdorf, também teólogo reformista. Ela então se casou com Lutero, em 1525.
Na época do
casamento, Lutero já havia sido excomungado (expulso) da Igreja Católica pelo
papa Leão 10º, que o considerava subversivo, após se negar a revogar as suas
contestações. e queimar um documento papal em público. Com apoio político,
Lutero evitou a pena de morte.
O casamento
entre uma ex-freira e um ex-padre não era bem visto por algumas pessoas do
círculo mais próximo de Lutero, que temiam um escândalo que enfraquecesse o
movimento reformista. Outro grupo defendeu o matrimônio, pois seria um
rompimento definitivo entre a Igreja Católica e Lutero, ao contrariar a norma
do celibato.
Anos antes,
Lutero já havia escrito a favor do casamento de clérigos, mas não havia se
dedicado a procurar uma esposa. A proposta partiu de Bora.
Estudiosos
indicam que o casamento dos dois foi importante, na tradição cristã
protestante, para consolidar o casamento de líderes religiosos, o que é
proibido no catolicismo. Foi um precedente poderoso por se tratar do maior
líder protestante. Eles tiveram seis filhos.
Os
adversários de Lutero tentaram utilizar Bora como um ‘ponto fraco’, a fim de
prejudicar a credibilidade dele perante os cristãos. Ela foi tachada de
alcoólatra, interesseira e vadia, por quem fazia propaganda anti-Lutero. Também
disseram que ela tinha filhos fora do casamento. Usaram ainda o fato de ser uma
ex-freira, algo escandaloso para a moral da época, como um ataque ao movimento
da Reforma.
O lar dos
dois, em Wittenberg (Alemanha), passou a servir não só como residência.
Eles ofereciam abrigo a cristãos perseguidos por apoiar as ideias reformistas,
recebiam personalidades políticas interessadas em falar com Lutero, promoviam
encontros para congregar intelectuais e líderes da Reforma, ofereciam pensionato
para estudantes, entre outras atividades.
A grande
responsável por administrar tantos eventos era Bora. Além disso, também
comandava as finanças da casa e da propriedade, na qual que produziam cerveja,
criavam animais, e também cultivavam um pomar.
Bora também
participava das discussões dos intelectuais da Reforma, em Wittenberg, sobre
religião e política. Tratou algumas vezes sobre as publicações do marido com
seus editores, insistiu que ele escrevesse uma resposta ao padre e teólogo
holandês Erasmo de Roterdã, um dos grandes críticos de Lutero. Ela detinha,
portanto, uma posição e prestígio raros para uma mulher na Europa do século 16.
O pensamento
de Bora é pouco conhecido pois não restaram muitos de seus escritos. Sabine
Kramer, historiadora e pastora luterana alemã que fez sua tese de doutorado
sobre Bora, disse à revista National Geographic que, nas transcrições e
publicações dos debates da época sobre a Reforma Protestante, muitas das
contribuições de Bora foram retiradas ou atribuídas a homens.
Lutero
morreu em 1546, aos 62 anos, em Eisleben, sua cidade natal. Em seu testamento,
deixava tudo para a esposa. Isso ia na contramão das leis da época, que
estabeleciam que deveria haver um homem entre os herdeiros. Katharina von Bora
morreu em 1552, aos 53 anos, na cidade de Torgau, depois de deixar Wittenberg
sucessivas vezes após a morte de Lutero, por razões como guerras, surto de
doenças e dificuldades financeiras.”
Texto: Matheus Pimentel
| =Nexo Jornal
Imagem: Katharina von Bora
- pintura do alemão Lucas Cranach,
1529
(JA, Out17)