Há poucos dias, terminei de ler os ‘Diários da Presidência’, de Fernando
Henrique Cardoso. São três alentados volumes, cada um abrangendo um biênio; o
quarto, 2001-2002, sairá no ano que vem. Não se trata propriamente de diários
escritos, e sim da transcrição de gravações que Fernando Henrique ia fazendo,
no seu tempo de presidente, para assinalar e eventualmente comentar os
acontecimentos que considerava mais significativos.
Independentemente de posições políticas, vejo a leitura dos diários como
instrutiva a respeito do cotidiano que caracteriza o exercício do governo e
também do contexto em que se dá a tomada de decisões. É de se prever que esses
textos venham a se tornar um importante documento de consulta para os
estudiosos desse período no Brasil.
Na imprensa, a publicação dos diários não parece ter suscitado muitas
análises ou debates. Uma exceção é o artigo que o cientista político Celso
Barros publicou no último número da revista Piauí − tenho uma ou outra
divergência, mas entendo que sua tentativa é meritória. O que mais vi na
imprensa foram matérias de intriga miúda, do tipo ‘FHC disse tal coisa sobre
Fulano ou Sicrano’ − e não acho que esse seja o modo adequado de abordar
diários, que são registros do momento, com impressões passageiras, desabafos,
reações zangadas etc., e portanto um pensar alto que é evidentemente mutável.
Não vou me aventurar a análises de conteúdo, até mesmo porque o material
é muito vasto; limito-me a registrar algumas impressões minhas de aspectos
periféricos do texto. Uma coisa que chama a atenção é a agenda alucinante do
dia típico de quem exerce um cargo desses. Por exemplo, tomar café da manhã no
Alvorada com ministros da área econômica, em seguida ir ao Palácio do Planalto
para receber credenciais de embaixadores, atender um grupo de deputados, depois
um de sindicalistas, pegar o helicóptero e ser levado à Base Aérea para tomar o
avião para o Triângulo Mineiro onde se dá uma exposição de gado, seguir de lá
para o Rio e almoçar com empresários, atender a um telefonema de um chefe de
Estado estrangeiro, e assim por diante, às vezes até tarde da noite. No dia
seguinte, começar tudo de novo, talvez entremeando com alguma viagem ao
exterior... E nessas situações se espera que o Presidente não apenas discurse,
mas diga coisas pertinentes.
Uma traço de personalidade que se percebe em Fernando Henrique é que se
trata de homem extremamente organizado. O próprio fato de manter um diário por
oito anos é prova disso - na verdade, ele não fazia registros todos os dias,
mas periodicamente; mas então procurava relembrar tudo o que houvera de mais
importante naquele intervalo de tempo. Essa organização e disciplina aparece
inclusive na prática regular de exercícios físicos. E também no empenho em
arranjar brechas para se atualizar na leitura não apenas dos materiais típicos
da mesa de um governante mas também de textos de reflexão, sobretudo na área de
ciências sociais.
Em algumas passagens, Fernando Henrique recorre ao referencial da
sociologia e da ciência política para comentar os fatos. Mais de uma vez,
menciona a distinção feita por Max Weber entre a ética da convicção, do ‘principismo’
e da moral absoluta, e a ética da responsabilidade, que precisa levar em conta
as consequências dos atos e evitar males maiores. Ao se pautar por essa última,
o governante se torna alvo fácil dos que insistem na proclamação da primeira.
Do ponto de vista dos estudos brasileiros, teriam sido desejáveis os
diários de outros presidentes. O único outro caso de que tenho notícia é o de
Getúlio Vargas, que andou fazendo registros durante alguns anos da década de 30.”
Texto: AC Bôa Nova – AMDG
(JA, Out17)