Aniversário do conflito serve para refletir sobre tradição
latino-americana de confiar em salvadores da pátria
Pedro Américo - ‘A Batalha do Avaí’, uma batalha da Guerra do Paraguai (detalhe) |
‘Morro com meu país!’
Proferida num 1º. de março como este domingo, há 150 anos, esta frase foi a última dita pelo marechal Francisco Solano López,
1827-1870, antes do tiro que colocaria fim à sua vida, e
determinaria a derrota de seu país na Guerra do Paraguai.
Pode soar apenas como a triste
despedida de um militar patriota que perde a vida no campo de batalha. Mas é
mais do que isso.
A Guerra do Paraguai, 1864-1870, não apenas significou o
desaparecimento da figura cruel de Solano López, como criou mitos e disputas
ideológicas sobre o conflito.
Também moldou a identidade paraguaia,
causou extrema destruição à economia e à população do país, enquanto serviu a
governantes autoritários para forjar uma narrativa de patriotismo que
justificaria atrocidades, cometidas muitos anos depois da morte do marechal.
Há farta literatura histórica para
explicar como Brasil, Argentina e Uruguai se uniram contra o Paraguai.
Pouco existe, porém, de reflexão
sobre essa ferida que completa 150 anos ainda
aberta.
As estimativas de mortos variam, mas
algo em torno de dois terços da população paraguaia teria sido eliminada - a
maioria composta por homens.
Com a derrota, o Paraguai perdeu
território para o Brasil e para a Argentina. O que restou ficou com os grandes
fazendeiros locais que fizeram acordos com os vencedores, criando uma
desigualdade que permanece até hoje - 85%
das terras pertencem a apenas 2,5% de
proprietários.
A questão da identidade paraguaia é
mais difícil de medir. Mas basta dizer que houve leituras e releituras desse
passado.
Para alguns, Solano López foi um
idealista anti-imperialista que, por confrontar as grandes potências, precisava
ser eliminado.
Para outros, um ditador cruel que
entregou seu país para o que seria um massacre desnecessário. O que nos leva a
outro ponto complicado.
Reprodução de foto de Francisco Solano Lopez |
Em momentos em que o Paraguai se viu
nas mãos de tiranos, como o general Alfredo Stroessner, 1954-1989, Solano López foi resgatado como
herói, por sua mão de ferro em defesa de interesses nacionais - enquanto isso,
opositores ao regime militar eram massacrados.
Em outros momentos, como aqueles em
que o Paraguai entra em fricção com o Brasil por causa da divisão da produção
de energia de Itaipu, o massacre, capitaneado pelo Brasil sobre o país no
século 19, volta a ganhar vida, como algo que
ainda espera uma espécie de revanche.
A guerra também afetou as mulheres.
Outro dia, num táxi em Assunção, o motorista me disse: ‘Aqui não tem problema
um homem ter várias mulheres, os militares diziam que precisávamos procriar
para fazer o país prosperar. Meu avô ainda pensa assim. Agora, o movimento
feminista tenta reverter isso, mas o machismo é algo instalado’.
Esse rapaz tem 20 e poucos anos e pensa diferente, mas suas antepassadas
sofreram as sequelas silenciosas da guerra, quando as mulheres assumiram a
economia familiar, aguentaram abusos, e procriaram por patriotismo.
O aniversário de 150 anos do fim da Guerra do Paraguai deve servir para
refletir sobre os custos dessa terrível tradição da América Latina de confiar
tanto em quem se apresenta como salvador da pátria.
Fonte:
Sylvia Colombo, correspondente FSP em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada, e
participou do programa Knight-Wallace da Universidade de Michigan.
(JA, 01-Mar20)