O palhaço se sentiu
prestigiado, engrandecido, forte, com os aplausos da plateia que ria de suas
caretas, de seu linguajar chulo, de suas frases sem sentido, de suas bravatas.
O público acreditou que, de tão absurdas as falas do bufão, tratavam-se de
brincadeiras, de piadas de mau gosto, de pura encenação cômica.
Mas o palhaço não estava para
brincadeiras, falava sério, seu discurso significava exatamente o que ele
queria dizer, não era zombaria, não era mofa, não era pilhéria, e a empolgação
da audiência o autorizava a crer que ela concordava com suas palavras.
O palhaço distribuía piadas e
pão e as pessoas pareciam se sentir saciadas, parecia que isso lhes bastava. O
truão se sentiu grande, achou que era o dono do circo, que possuía a
consciência da plateia, que a tinha como refém.
Então, resolveu apoderar-se
do circo, transformá-lo em um picadeiro no qual seria o único astro, de onde
ouviria eternamente os aplausos do público a seus atos insensatos, a suas
atitudes grotescas, a suas palhaçadas desengraçadas.
E as pessoas riam, achavam
graça das atitudes bufas, do comportamento desarrazoado, dos atos agressivos,
do malabarismo de sua lógica. Achavam-no caricato, simplório; não atinavam com
as reais intenções do palhaço.
Apoderando-se do circo, o
histrião passou a saquear as bilheterias; enriqueceu; enriqueceu sua trupe;
enalteceu, prestigiou, financiou palhaços internacionais de laia semelhante à
sua.
Não cuidou do circo. A lona
rasgou-se, a estrutura ficou corroída, as tábuas do palco apodreceram, os
equipamentos se arruinaram, as arquibancadas ruíram. Para que conservar o
circo? Ele era o senhor do circo, o circo lhe pertencia, a plateia o adorava...
Então, o palhaço avançou mais
uma vez sobre as bilheterias, esgotou-as quase completamente, construiu doze
novos picadeiros pelo país afora e, cinicamente, os ofereceu ao público como
uma grande pilhéria, aliás, sua maior piada.
A visão dos novos picadeiros
provocou como que uma epifania coletiva. A plateia se deu conta de que por anos
havia sido ludibriada pelo palhaço. Comparou a miséria de sua tenda com a
suntuosidade presunçosa, descabida, arrogante, agressiva dos novos picadeiros.
E deixou de rir. Percebeu que
era possível viver em um circo comparável aos do primeiro mundo, sobejavam
recursos nas bilheterias, na plateia havia pessoas capazes de realizarem a
transformação. Dependia apenas dela, de sua vontade, exigir, liderar, realizar
as mudanças.
E saiu às ruas rugindo,
expressando seu rancor, seu desprezo pelo palhaço, pela sua trupe e por tudo o
que eles representam.
Agora que a fantasia se
rasgou, que a máscara caiu, o palhaço desapareceu, está escondido em seu
camarim, refugiado no interior de algum trailer, torcendo para que o furor se
amenize, para que o clamor se cale, e ele possa voltar ao picadeiro ainda mais
poderoso.
O poder é nosso, e este é o momento
para se afastar de vez o palhaço.
Fonte: Gabriel T. Fernandes | Quase ao Acaso
(JA, Jul19)