País ainda é o porto de
abrigo para o eterno judeu errante
Para que
serve Israel? Boa pergunta. Às vezes esquecemos o básico. E o básico foi
explicado há quase 50 anos pelo filósofo Isaiah Berlin, no melhor dos seus
ensaios. Não, não é o clássico ‘Dois Conceitos de Liberdade’, que nos apresenta
um Berlin liberal.
É ‘Jewish
Slavery and Emancipation’, que nos apresenta um Berlin sionista, antes de essa
palavra ter sido proscrita pelos bem pensantes. O ensaio não envelheceu uma
ruga.
Argumenta
Berlin que o iluminismo e a Revolução Francesa libertaram os judeus da Europa
Ocidental. Como? Permitindo que a vasta maioria se integrasse pacificamente nas
sociedades gentias, e que abandonasse, na medida do possível, as suas
identidades judaicas.
Mas depois
existiram três tipos de judeus que responderam à tentação da assimilação de
formas diferentes.
O primeiro
grupo recusou essa assimilação e, fechado na ortodoxia, continuou a viver à
margem da sociedade gentia.
Mas o que
interessava a Berlin eram os dois grupos seguintes, que continuaram a viver a
sua condição judaica de forma perturbante e perturbada. Como se fossem ‘seres
humanos deformados’, portadores de uma ‘corcunda’.
Havia
aqueles que exibiam essa deformidade, de forma histérica, como se a corcunda
fosse a principal das virtudes humanas.
E havia
aqueles que escondiam essa condição, vivendo na ansiedade permanente de serem
descobertos.
Seja como
for, ambos eram corcundas, ambos partilhavam o mesmo destino: sentirem-se
estranhos em terra estranha. Pelo menos, até a criação de Israel.
Para Berlin,
Israel havia normalizado a condição judaica. Ou, nas palavras do próprio,
Israel era a operação cirúrgica que removeu a deformidade. Pela primeira vez em
2.000 anos, os judeus podiam caminhar com as costas direitas.
Não sei se o
diretor israelense Nadav Lapid leu Isaiah Berlin. Parece. Sobretudo quando
assistimos ao seu ‘Synonymes’, um filme que estranhamente ainda não estreou no
Brasil —digo estranhamente porque foi sensação entre a crítica e premiado com o
Urso de Ouro no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim 2019. Também
ganhou o prêmio FIPRESCI no festival. (Para os interessados, existe o DVD na Amazon
francesa)
No centro de
‘Synonymes’ encontramos Yoav (Tom Mercier), um jovem israelense, ex-soldado,
que abandona Israel para encontrar uma nova identidade em Paris.
Yoav é um
caso terminal de auto repúdio e autopunição. Ele se recusa falar hebraico.
Recusa usar quipá.
‘Vou ser
francês!’, diz ele (em francês), transportando um dicionário no bolso e
comportando-se como se fosse Jean-Paul Belmondo nos filmes de Godard. ‘Israel
vai morrer antes de mim!’, declara ufanamente.
Em
contraposição a Yoav, temos o seu amigo Michel (Olivier Loustau), também
judeu, que aproveita qualquer
oportunidade para exibir seu sionismo agressivo. A sequência em que canta o
hino de Israel na cara dos passageiros do metrô, esperando que alguém o ataque,
é de gelar os ossos.
Yoav e Michel
representam os corcundas de que Berlin nos falava. Representam, em suma, uma
nova crise da identidade judaica, marcada por um desconforto existencial que
chega a ser absurdo e risível. E, dessa vez, sem a desculpa de não terem um
Israel para normalizar os seus problemas.
Pelo
contrário: Israel parece ser a causa das suas neuroses —neurose por negação
(Yoav), outra por afirmação (Michel). Será que Berlin estava fundamentalmente
errado quando atribuía ao projeto sionista o remédio milagroso para curar os
judeus da diáspora?
Não conto o
fim desta espantosa história parisiense. Mas conto outra, também passada em
Paris.
Foi em 1894.
Um oficial francês, de nome Alfred Dreyfus, era levado a tribunal e falsamente
acusado de espionagem para a Alemanha.
O caso
dividiu a França e fez emergir na praça pública um antissemitismo que
impressionou Theodor Herzl. Na altura, Herzl era correspondente em Paris de um
jornal austríaco. Se os judeus não estavam em segurança na França, o berço do
iluminismo, onde poderiam eles viver seguros?
A resposta
de Herzl, publicada no ano seguinte, intitulou-se ‘O Estado Judaico’. Ali
estava o programa sionista moderno, que a desagregação do Império Otomano,
depois da Grande Guerra, converteu em possibilidade. Os judeus só estariam em
segurança quando tivessem o seu próprio estado.
O filme de
Lapid não é tão otimista e messiânico. Mas, em tom amargo, há pelo menos o
reconhecimento de que existem portas que não se abrem para estrangeiros, por
mais que eles tentem.
E que
Israel, ‘malgré tout’, ainda é o porto de abrigo para o eterno judeu errante.
Fonte: João Pereira
Coutinho, escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica
Portuguesa | FSP
(JA, Jul19)