Jair era um homem de
cerca de 30 anos, solteiro. Sempre teve uma vida estável, praticando uma rotina
confortável, porém sem grandes emoções.
Convivia sempre com os
mesmos grupos de amigos, quase todos estabilizados como ele, e desfrutando a vida da melhor maneira, dentro de suas expectativas limitadas.
Entretanto, Jair, de uns
tempos para cá, começou a sentir uma certa melancolia, sentia que não estava
fazendo o que devia, aquilo que, talvez, fosse melhor para ele. Mas, não estava habituado, preparado para
fazer alguma coisa fora do que estivesse programado. Além disso, embora já tivesse tido algumas
ideias, não tinha coragem para mudar.
Qualquer iniciativa nesse sentido, implicaria em riscos que ele não
estava disposto a correr.
Num determinado dia,
ficou sabendo que um colega de trabalho, o Ângelo, estava tendo um caso com uma
colega comum, a Vera. Vera era uma moça muito bonita, atraente, simpática. Ele, inclusive, já tinha tido, por várias
vezes, vontade de se aproximar dela, assediá-la. Porém, ela era casada e ele se
continha. Por outro lado, embora ela
fosse casada, tivesse dois filhos, era mau casada – seu marido, um homem de bem
mais idade que ela, embora provedor eficiente, morava fora da
cidade, e só se encontrava com a família nos finais de semana.
Esse seu colega, o
Ângelo, também era casado e morava numa
cidade próxima da de onde trabalhavam. Por conta disso, para evitar
deslocamentos diários, ele tinha um apartamento na cidade. Aliás, Como Jair ficou sabendo depois, a
maior aproximação com a Vera, ocorreu justamente por conta disso. Ele pediu a
Vera que, como ela vivia na cidade, e conhecia muita gente, arranjasse para ele
uma diarista para fazer a limpeza semanal do seu apartamento. Vera, prestativa,
cedeu um dia da semana da sua própria empregada para fazer esse serviço. Ele
lhe entregou uma chave do apartamento, e pediu a ela que coordenasse isso.
Oportunamente, se
encontraram no apartamento dele, e aconteceu o que era muito previsível –
começaram a viver uma história de amor, um romance.
Jair, começou a pensar
muito frequentemente no colega e na sua amante, no momento que eles vivam.
Sentia uma quase inveja, mas não era - se fosse, seria do bem, pois, conscientemente,
não desejava tirar o que o outro tinha. Esse pensamento foi tomando uma
proporção inconveniente, que ele tentava evitar, pensando em outra coisa.
Bem, num determinado dia,
pela manhã, acordou com um ruído de porta da frente se abrindo e fechando, sinalizando que alguém
estava entrando no seu apartamento. Em seguida, percebeu que era a
Vera, entrando no seu quarto. O que ela estaria fazendo ali?
Ficou espantado, e mais ainda quando percebeu que aquele não era o seu
quarto, mas sim o do Ângelo. Ela se
aproximou, o chamou de Ângelo, e disse que estava ali para realizar o desejo
dele, de encontrá-la, e de fazer amor com ela, ao acordar. Ele não teve outra reação,
a não ser assumir a identidade de Ângelo,
e fazer o que ela esperava dele (ou do Ângelo, no caso).
Foram momentos
inesquecíveis, de arrebatamento, que ele nunca havia vivenciado. Em seguida,
sorridente, com um ar malicioso de missão cumprida, Vera se despediu, e foi
para o trabalho, para onde ele iria logo em seguida.
Ao chegar lá, procurou e
logo encontrou Ângelo. Notou que ele estava algo transtornado, e lhe perguntou
se tudo bem. Ângelo lhe confidenciou que, há cerca de uma semana atrás, sua
namorada -sem citar o nome-, havia lhe feito uma visita surpresa pela manhã,
cheia de desejo, e que ele teve um despertar pleno de sexo, um sexo
inesquecível, e que agora só conseguia pensar nisso, o que era totalmente
inconveniente no ambiente de trabalho. Jair o aconselhou a relaxar, a procurar se concentrar no que tinha que fazer, e que
acabaria dando tudo certo.
Surpreso, Jair teve que
admitir que, de alguma maneira, ele vivera os mesmos momentos que Ângelo, como
se ele fora o protagonista. O que variou foi o tempo – o que aconteceu com
Ângelo aconteceu há uma semana atrás; o que aconteceu com ele foi hoje!
Extraordinário! Ele havia vivido uma realidade, um fato, que estava guardado na
memória do seu companheiro! Como isso foi possível?
Ele ponderou que sempre fora
muito empático, quase sempre sabia o que os outros estavam pensando, sentindo,
mesmo antes mesmo deles se manifestarem, falarem. Mas, o que aconteceu hoje, extrapolou.
Numa outra ocasião, num
dia à tarde, Jair estava sentado no balcão de um bar. Tomava um lanche e, ao
seu lado, observou, estava sentado um rapaz todo compenetrado, pensativo, também
tomando lanche.
No momento seguinte, estava
numa sala junto com uma mulher especialmente bonita, elegante, por quem, percebeu, sentia, nutria uma especial atração. Ela estava consternada, nervosa, enquanto
ele lhe dizia que ficara sabendo de um fato do passado dela, que ela não havia
lhe contado -embora ele, no início do relacionamento, houvesse perguntado se
havia algo importante que ela devesse lhe contar. Esse fato, como ele lhe dizia, inviabilizava todos os planos
futuros em comum, que incluía morar juntos - numa casa que, praticamente, já
estava disponibilizada, e tudo mais, decorrente de uma vida a dois. Enfim, ele
não confiava mais nela.
E ela perguntou: ‘E então,
como ficamos? Ele lhe disse que não restava outra alternativa, a não ser cada um
seguir o seu caminho.
E assim foi. Nos dias
seguintes, ela pediu demissão na empresa onde trabalhava, devolveu o imóvel onde morava, comprou a passagem de avião para
voltar para o seu país de origem. No dia da partida ele a levou ao
aeroporto. Na hora de entrar no saguão reservado aos passageiros, ela pediu que
ele não a olhasse, como se não quisesse que mais nenhum laço de emoção a
prendesse nessa fase da sua vida, que estava por deixar.
Saindo dali, Jair foi a um
bar onde costumavam ir quando ainda estavam juntos, e ficou pensando em todos os
momentos que compartilharam, seus planos frustrados, etc. Foi quando olhando para o lado, viu a si próprio, olhando para ele.
Fatos assim começaram
a se tornar frequentes. Inicialmente era
interessante, mas, depois, passaram a incomodá-lo. Afinal, as memórias das pessoas eram privadas, e não era seu direito penetrar nelas, assumir como se fossem suas próprias, e muito menos
julgar.
Para evitar, começou a se afastar do
convívio das pessoas e, no finalmente, passou a morar no litoral, numa ilha, pouco frequentada fora da temporada, onde tinha uma casa. Lá, tinha muitas oportunidade de ficar sozinho, no seu barco, por dias e dias, seguindo, vivendo o ‘seu’
destino, cultivando as ‘suas’ próprias memórias.
Com as experiências vividas através das memórias compartilhadas, percebeu que passou a ter mais facilidade para se aventurar mais, fazer coisas diferentes, enfim a viver plenamente. Assim, com o tempo passando, seu arquivo de memórias foi crescendo e, pouco a pouco, Jair foi conseguindo evitar a ser levado a compartilhar a memória dos outros, mesmo porque as suas próprias passaram a ocupar quase todo o seu espaço, o seu tempo. Percebeu então que, ao contrário de antigamente, a sua vida agora valia a pena ser vivida, sentia que estava realizando alguma coisa. Através das suas novas memórias estava criando uma nova, a sua melhor identidade.
"Memórias não se referem apenas ao passado. Elas podem determinar o nosso presente, e o nosso futuro."
(JA, Jul17)