O artigo abaixo, a respeito da morte de Machado de Assis (1839-1908) foi publicado por Euclides da Cunha, em 30 de setembro de 1908,
no ‘Jornal do Comércio’. Machado havia falecido um dia antes.
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Retrato de Machado de Assis, 1905, de autoria de H. Bernardelli, óleo sobre tela |
Na noite em
que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em
Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua
enfermidade.
Na sala de
jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem
meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família –
comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos,
ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos. As vozes eram
discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a
placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência,
antes da morte.
No salão de
visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos.
E
compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao parecer tranqüilos na
iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável
e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário
escritor.
Realmente,
na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um
gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas
aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um
descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última
dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o
reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir,
que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e
recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana.
E
gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na
morte...
Mas aquela placidez aguda despertava na sala
principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José
Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes.
Resumia-os um amargo desapontamento.
De um modo geral, não se compreendia que uma
vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises
sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses
radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha
indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da
estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e
nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto descaso – a
cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na
normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se
cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...
Neste
momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas
tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na.
Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo.
Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o
conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da
casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler
nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o
pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o
apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não
lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.
E o anônimo
juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não
disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto
de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e,
sem dizer palavra, saiu.
À porta José
Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve
ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá
tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma
nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o
peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua
Terra.
Ele saiu – e
houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração.
No fastígio
de certos estados morais concretizaram-se às vezes as maiores idealizações.
Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade.
Fonte: ‘Machado de Assis: um gênio brasileiro’, de Daniel Piza, 2005 | Sérgio de Carvalho Pachá, AMDG
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O jovem
desconhecido, veio a saber-se muitos anos depois, chamava-se Astrojildo
Pereira. Adulto, tornou-se um crítico literário respeitado.
(JA, Ago18)