Como
o historiador Yuval Harari, que lança seu terceiro livro no Brasil, tornou-se
um improvável best-seller e um discreto profeta de pesadelos tecnológicos
História Futurista - Um holograma de Harari em conferência no Canadá: visão crítica da inteligência artificial |
Trata-se de um acadêmico, um homem das
ciências humanas, com formação em história pela vetusta Universidade de Oxford,
na Inglaterra. Frequenta o circuito fast-food de divulgação do pensamento que se organizou
em torno das conferências TED, mas mantém o pé na academia, lecionando na
Universidade Hebraica de Jerusalém. O extraordinário poder de síntese histórica
que demonstrou em ‘Sapiens’, seu primeiro best-seller, de 2011, e ainda hoje no
topo da lista de não ficção, e a ousadia especulativa de ‘Homo Deus’ lançaram
esse historiador de 42 anos ao estrelato. Juntas, as duas obras venderam 12
milhões de exemplares em sessenta países. Para fins de comparação, considere-se
que um dos livros mais discutidos da década, ‘O Capital no Século XXI’, no
economista francês Thomas Piketty, vendeu 2,5 milhões. Harari é um intelectual
pop.
'21 Lições para o Século 21', Yuval Noah Harari (tradução de Paulo Geiger; Companhia das Letras; 432 páginas; 54,90 reais, ou 29,90 em versão digital) |
‘Sapiens — Uma Breve História da
Humanidade’ venceu pela oferta de informação densa em relativamente poucas
páginas (menos de 500). Harari consolidou ali uma série de estudos científicos
e históricos para demonstrar como se deram os saltos evolutivos que, ao longo
de mais de 200 000 anos, levaram um singelo primata, o Homo sapiens, a dominar
o planeta.
Em ‘Homo Deus’, ele entrou em terreno
que muitos historiadores consideram temerário: como anuncia o subtítulo do
livro, Uma Breve História do Amanhã, trata-se de uma hipótese sobre o futuro a
longo prazo. A humanidade, propõe Harari, se dividirá em duas espécies: ao lado
do Homo sapiens, nossa tradicional grife biológica, surgirá o Homo Deus, cujo
corpo e cérebro serão aprimorados por tecnologias caras. O autor prevê, assim,
um novo conflito de classes, não mais nos moldes que Karl Marx desenhou no
século XIX, entre proletários e burgueses, mas entre uma elite que dominará os
dados digitais, as inovações da bioengenharia e o comando de grandes
corporações do Vale do Silício e, de outro lado, as pobres pessoas comuns que
não terão dinheiro nem influência para desfrutar esses avanços.
Essas previsões um tanto soturnas
fascinaram líderes como o ex-presidente americano Barack Obama e — o que pode
ser considerado uma ironia — titãs da tecnologia como Bill Gates, da Microsoft,
e Mark Zuckerberg, do Facebook. Harari, com Homo Deus, filiou-se a uma tradição
de previsões cientificamente fundamentadas (o que não significa que sejam acertadas)
sobre o futuro, ramo mais frequentado por cientistas e escritores de ficção
científica do que por historiadores. À diferença de figuras como Arthur C.
Clarke e Ray Kurzweil, Harari tende a enfatizar o potencial apocalíptico da
tecnologia. É o autor certo para um tempo em que males da industrialização como
o aquecimento global estão na ordem do dia.
Seu novo trabalho, lançado
simultaneamente em mais de cinquenta países e 34 línguas, dá continuidade aos
temas abordados em Sapiens e Homo Deus. Se o primeiro se debruçava sobre o
passado da humanidade e o segundo sobre o futuro, ‘21 Lições para o Século 21’
reflete acerca do presente. A questão que permeia o texto é: ‘Quais são os
desafios a serem enfrentados hoje pela civilização e como superá-los?’. Resulta
daí um livro mais, digamos, pé no chão do que Homo Deus. Algumas de suas 21
questões: as mudanças climáticas; a possibilidade de uma guerra nuclear com a
ascensão de líderes de perfil autoritário como Donald Trump; o desemprego em
consequência da automação; o crescente monopólio da internet por poucas
corporações.
‘21 Lições para o Século 21’
preocupa-se sobretudo com a crise pela qual passa o atual modelo político e
econômico. ‘O liberalismo não tem respostas imediatas para os maiores problemas
que enfrentamos: o colapso ecológico e a disrupção tecnológica’, escreve
Harari. Com sensibilidade didática, o autor fala diretamente às perplexidades
de seus leitores diante do mundo contemporâneo: ‘Em 2018 a pessoa comum
sente-se cada vez mais irrelevante. Um monte de palavras misteriosas são
despejadas excitadamente (…) — globalização, blockchain, inteligência
artificial, aprendizado de máquina —, e as pessoas comuns bem podem suspeitar
que nenhuma dessas frases tem a ver com elas’.
Embora discreto em sua vida pessoal,
Harari também acumula uma série de elementos biográficos que contribuem para
seu estatuto pop. Na vida e na obra, é um homem alinhado à sensibilidade
progressista moderna. Gay assumido, aborda o medo da ascensão de autocracias
que atentam contra as conquistas da revolução sexual. Levanta a bandeira da
sustentabilidade não só nos livros, mas na própria dieta vegana. Ateu, critica
as derivações fanáticas da religião. Sem ser propriamente engajado ou
partidário, o historiador abraça todas as causas que nutrem os espíritos mais
críticos. Seu triunfo está não apenas em delinear como em personificar suas 21
questões.
Problemas
cada vez mais globais
Demasiado Humano - Harari: nem algoritmos são livres de preconceito |
Em entrevista por e-mail, o historiador
israelense Yuval Noah Harari fala de alguns dilemas globais examinados em 21
Ideias para o Século 21.
Entre
os temas do livro, quais são os desafios globais mais prementes? Neste
momento a humanidade enfrenta três, em especial: a possibilidade de uma guerra
nuclear, o aquecimento global e a revolução tecnológica. São problemas globais
— eles não serão resolvidos por uma única nação. O governo brasileiro não
consegue proteger o país da guerra nuclear ou do aquecimento global, a menos
que coopere com a China, os Estados Unidos e a Rússia. Da mesma forma, se há
medo do potencial apocalíptico da inteligência artificial (IA) e da
bioengenharia, não se deve esperar que uma única nação regule essas
tecnologias. Suponha que o Brasil proíba armas autônomas e bebês geneticamente
modificados. De que isso adiantaria se os Estados Unidos produzirem robôs
assassinos e os engenheiros chineses fizerem humanos geneticamente
aperfeiçoados? A consequência seria que o Brasil se sentiria tentado a quebrar
a própria proibição para não ficar para trás.
O
liberalismo está em crise com a ascensão de políticos populistas. Qual a
gravidade dessa ameaça? A democracia liberal como a conhecemos
no século XX não consegue sobreviver por muito mais tempo. Mas é possível
reinventá-la e adaptá-la ao novo contexto do século XXI. A grande vantagem do liberalismo é sua flexibilidade, seu
desapego a dogmas. Esse modelo já experimentou vários ciclos de
crise e de regeneração. Se você acha que o liberalismo está em crise agora,
pense na situação que ele enfrentou com a I Guerra Mundial, com o nazifascismo
e com o comunismo. Há, portanto, uma boa chance de que o liberalismo se
recomponha.
O
senhor argumenta que a inteligência artificial poderá introduzir novas formas
de preconceito. Como isso se daria? No passado,
tínhamos de lidar com a discriminação coletiva contra categorias inteiras, como
as mulheres, os gays e os negros. Em breve, porém, teremos de lidar com a
discriminação individual, não mais coletiva. Será o preconceito com base em dados
coletados sobre cada pessoa — informações que podem revelar que alguém é
péssimo em matemática, ou um mau vizinho, ou mais preguiçoso que a média.
Bancos e outras corporações já estão usando algoritmos para analisar dados
pessoais para só então tomar decisões que nos afetam. Quando se solicita um
empréstimo, é provável que seu analista seja uma IA. O algoritmo analisa dados
como seu histórico de pagamento, seu grau de escolaridade e até a frequência de
uso de seu plano de saúde para saber se você é confiável. Muitas vezes, o robô
faz um trabalho melhor do que o funcionário de carne e osso. O problema é que,
quando o algoritmo discrimina alguém injustamente, é difícil detectar isso. Se
o banco se recusa a lhe conceder um empréstimo e você pergunta por quê, a
resposta é ‘o algoritmo negou’. Aí você retruca: ‘Por que o algoritmo disse
não?’. Ao que eles respondem: ‘Não sabemos’. Nenhum funcionário entende o
algoritmo porque ele é baseado no que se chama de aprendizado de máquina
avançado. Quando as pessoas discriminam grupos inteiros, esses coletivos se
unem, se organizam e protestam. Mas e se o preconceito tem origem em um
algoritmo que pode discriminar um único indivíduo, não por ser mulher, gay ou
negro, mas apenas por ser quem é?
Como
ocupar as massas que ficarão desempregadas no futuro por causa da automação? Os
políticos estão demorando para reagir a essa crise iminente. A falta de
empregos atingirá o mundo todo e — aqui me repito — não pode ser resolvida por
nenhum governo isoladamente. Nas próximas décadas, a IA, a impressão 3D e
outras inovações automatizarão centenas de milhões de tarefas humanas. Ao mesmo
tempo, vão aparecer novos tipos de emprego e novas fontes de riqueza. No
entanto, o problema central é que a divisão de perdas e ganhos não será isonômica.
Haverá mais oportunidades, por exemplo, para engenheiros de software
americanos, mas menos para trabalhadores da indústria têxtil e motoristas de
caminhão, especialmente em nações pobres como Honduras. Pergunto-me: numa
economia globalizada, o governo americano aceitará aumentar os impostos sobre
os gigantes da alta tecnologia com a meta de apoiar e treinar hondurenhos
desempregados em consequência justamente da operação dessas empresas
americanas? É muito improvável. Hoje temos um
cenário econômico global, mas as políticas ainda são extremamente
nacionalistas. A menos que encontremos soluções para o todo, as rupturas
causadas pela IA devem levar países inteiros ao colapso, resultando em ondas de
caos e violência.
O
senhor examina quanto nossa vida social é baseada em mentiras e invenções
potencialmente danosas. Em um mundo cada vez mais virtual, o que é real em
nossa sociedade? É necessário separar as histórias
fictícias que sempre sustentaram as civilizações das mentiras descaradas, como
as hoje chamadas fake news.
Por exemplo, se você disser que ‘o Brasil já foi colônia de Portugal’, isso
fará parecer que o Brasil e Portugal são coisas reais. Se disser que ‘há mais
cristãos do que muçulmanos no mundo’, fará parecer que o cristianismo e o
islamismo são reais. Ou, se disser que ‘a Amazon ganhou mais dólares no ano
passado do que a Toyota’, fará parecer que a Amazon, a Toyota e os dólares são
também reais. Essas afirmações não constituem fake news, mas, no limite,
são todas ficções, pois nações, religiões, corporações e dinheiro são entidades
que existem apenas na imaginação humana. Tais ficções podem ser úteis. O
problema é quando as pessoas esquecem que essas são histórias imaginárias e
começam a acreditar que estão diante da realidade absoluta. Por exemplo, em meu
país natal, Israel, os israelenses causam sofrimento aos palestinos,
justificando-se com noções fictícias sobre a ‘nação eterna’ ou o ‘direito
divino do povo judeu’. Não precisamos eliminar todas as ficções, mas nunca
devemos ser tentados a prejudicar seres reais em prol de uma entidade fictícia.
Como saber o que é real? O melhor teste que posso oferecer é o do sofrimento.
Uma nação não pode sofrer, mesmo que perca uma guerra. Uma corporação não sente
dor ao falir. Por contraste, quando um soldado é ferido, ele sente dor. Quando
um trabalhador perde o emprego, ele sofre. Humanos são as entidades reais.
O
que ele pensa
As ideias de Harari sobre algumas das
mais discutidas questões contemporâneas
Diversidade sexual
‘Quando eu tinha 21 anos, finalmente
constatei que era gay, após viver vários anos em negação. Agora imagine como
será essa situação em 2050, quando um algoritmo for capaz de dizer a todo
adolescente exatamente onde ele está no espectro gay/hétero’
Privacidade digital
‘Quando os algoritmos me conhecerem
melhor do que eu mesmo, a autoridade passará das pessoas para os sistemas de
big data. Existe a possibilidade de uma completa vigilância da humanidade’
Ambientalismo
Sou vegano e tento evitar produtos
animais, mas não tenho a menor ilusão de que posso convencer bilhões de outras
pessoas a desistir completamente de carne e leite’
Racismo e xenofobia
‘Sociedades distintas adotam
diferentes tipos de hierarquia imaginária. A raça é muito importante para os
americanos modernos, mas foi relativamente insignificante para os muçulmanos
medievais. A casta era uma questão de vida ou morte na Índia medieval, enquanto
na Europa moderna é praticamente inexistente’
Discursos autoritários
‘Não acho que Trump possa empurrar as
mulheres de volta para a cozinha ou mandar os gays de volta para o armário. Meu grande medo é a ascensão do nacionalismo,
algo que impediria as sociedades de enfrentar os desafios reais que existem
neste século’
Os
Oráculos da Ciência
Harari segue uma tradição de
cientistas e escritores que tentaram prever o futuro
Fonte: Filipe Vilicic, André
Lopes | Revista Veja
(JA, Ago18)