O fracasso em constituir uma esperança compartilhada que dê
sentido à nação
As
afirmações genéricas sobre o estado de espírito de um povo são facilmente
enganosas: ao diagnosticarmos um grupo ao qual pertencemos, psicólogos,
antropólogos, jornalistas etc., tendemos a atribuir à coletividade sentimentos
que são apenas os nossos.
É por isso
que, em tese, não faço diagnósticos coletivos temerários. Só que hoje é um
pouco diferente: desde 1985, quando comecei a clinicar no Brasil, não me lembro
de ter percebido um desânimo tão difuso e generalizado quanto agora.
Uma pesquisa
recente do Datafolha aponta que 72% dos brasileiros enxergam uma piora do
cenário econômico, embora só 49% declarem que passaram de fato por um
retrocesso. Ou seja, não é necessário sofrer da crise para ‘sentir’ que estamos
mal.
Os dois
sintomas básicos para diagnosticar um transtorno
depressivo maior são o humor deprimido (sentir-se triste e sem esperança), e uma
diminuição do interesse em quase todas as atividades. Justamente,
uma nova pesquisa (Folha de 12/6) anuncia que 53% dos brasileiros não têm
interesse na Copa do Mundo, que logo vai começar.
A esses
sintomas, acrescente, segundo sua
preferência, sentimento de inutilidade,
capacidade diminuída de pensar ou se concentrar, indecisão, pensamentos de
morte recorrentes (por bala perdida, assalto ou espera para exames
no SUS).
Em 2017,
segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil foi o quinto país mais
deprimido do mundo e o campeão em ansiedade. A
ansiedade é a grande companheira da depressão: tensão, inquietude, dificuldade
de concentração, sensação de perigo iminente.
Quando soube
desse ranking, pensei que talvez a gente devesse atribuir o destaque brasileiro
a um excesso de diagnósticos e de medicação. Hoje, não estou tão certo disso.
Muitos
colegas vão achar essas considerações bizarras, mas é difícil negar a
existência de transtornos ‘sociogênicos’, que refletem as preocupações mais
difusas num momento e num lugar específicos --os quais não determinam as
patologias dos indivíduos, mas, isso sim, fornecem um pano de fundo coletivo.
O que nos
deu esse ‘pano de fundo’? Numa ordem qualquer: a sensação repetida de um
fracasso econômico (acompanhada pela lenda de nossa riqueza ‘natural’); o
fracasso da democracia representativa (persistência das elites tradicionais,
corrupção generalizada, primazia das razões eleitoreiras sobre os interesses da
comunidade); o fracasso moral vergonhoso (as provas repetidas de que ninguém
está disposto a pagar o preço das próprias medidas que lhe parecem certas); o
fracasso em proteger um lar seguro e um espaço público; o fracasso, enfim, em
constituir uma esperança compartilhada que dê sentido à existência de uma
nação.
A ‘psicologia
positiva’ norte-americana definia a esperança
como a existência simultânea de um objetivo e de um plano definido para alcançá-lo.
O filósofo
Richard Rorty (‘Philosophy and Social Hope’, Penguin, 1999) definia a esperança
como uma narrativa que nos promete um futuro melhor. Ele mostrava que várias
narrativas já se comprovaram falsas e devemos aprender a viver sem uma
narrativa comum que nos faça esperar —ou seja, cada um deveria inventar sua
esperança.
No desespero, não há planos de ação definidos e não há
narrativas que prometam um futuro. Mas, no desespero, a esperança não morre:
ela continua viva, numa espécie de pensamento mágico.
O deprimido
não consegue fazer nada para mudar sua vida, mas não deixa de jogar na
Mega-Sena.
O deprimido
espera muito, sim, mas sua esperança é abstrata, como os discursos de uma
campanha política ruim, que promete e nunca diz quais são os passos necessários
para chegar lá.
Se Eric
Hobsbawm estivesse vivo e quisesse dedicar um volume à nossa década, acho que
escolheria o título ‘A Era da Farsa’ e contaria que o mundo, ‘naquela época’,
tinha sérios problemas e precisava muito de pessoas sérias para resolvê-los
(ou, ao menos, para tentar), mas, por ironia do destino, ele foi liderado por
farsantes.
Enfim, como
uma espécie triste de consolação, poderíamos afirmar que os brasileiros estão
encontrando uma nova unidade, um traço comum. Já tiveram em comum a primazia do
coração sobre a razão, que Sérgio Buarque chamou de cordialidade. Agora, quem
sabe, eles consigam se juntar e encontrar uma comunidade de destino ao redor de
uma depressão compartilhada.
Texto: Contardo
Calligaris, Italiano, psicanalista. Deu aula de estudos culturais em NY. Reflete
sobre cultura e modernidade | FSP
(JA, Jun18)