Antonieta Biondi Assumpção, 91, moradora do Alto da Boa Vista, na zona sul |
É
impressionante como a história da vila italiana de seis moradas, na rua
Visconde de Parnaíba, no Brás, vem, com riqueza de detalhes, à memória de
Antonieta.
Os pés de
goiaba, pera, ameixa e cereja perfumavam todo o quintal. O aroma das frutas ora
se misturava à fumaça dos trens, ora à neblina dos fins de noite outonais.
Do forno a
lenha emanava um cheiro de pão italiano de dar água na boca. Embaixo dele,
ficava o galinheiro, onde a então garotinha se punha a retirar os ovos do dia.
Quase todos
os adultos dali eram de uma mesma família, imigrantes da região de Felitto,
Salerno (Itália), como o avô dela, Antônio Di Dario. Eles só falavam italiano.
A menina cresceu compreendendo tudo, mas o português foi imperativo, ainda mais
quando, aos 21 anos, ela teve que cuidar dos quatro irmãos após a morte da mãe,
Luiza.
Quem diria
que, mais de 70 anos depois, esse universo italiano voltaria a fazer parte de
seu dia a dia. Detalhe: por meio de grupos em redes sociais. Mãe de dois filhos
e avó de quatro netos, resolveu não apelar para as crianças, ‘que não têm
paciência de explicar’, e contratou um professor para ensiná-la a mexer no
computador.
Conectou-se
com familiares, velhos e novos amigos, inclusive de Salerno. ‘Quero me manter
ocupada’, diz. ‘Não sou do tipo que fica encucada, pensando na idade’.
Segue o
cantor italiano Gigi D'Alessio. Não perde a oportunidade de dar um ‘like’ nas
notícias da família real. Jamais grava mensagem. ‘Meu negócio é escrever, mas
nunca faço isso quando estou dirigindo’, diz. Sim, ela dirige. Vai às compras,
busca as netas na escola, cozinha, costura. ‘Esta saia aqui fui eu que fiz’,
orgulha-se’. ‘Sou criativa’.
Disso, dona
Antonieta, ninguém duvida.
Ático Alves de Souza, 91, morador do Bairro do Macedo, em Guarulhos |
‘Aqui é o
lugar onde gosto de estar, ouvir e contar histórias, que me ajudam a entender
um pouquinho dessa cidade tão grande. Acho que daqui eu tento compreender o
mundo. É a minha vida’, explica seu Ático, funcionário mais antigo do Grupo
Fasano, no qual ele trabalha há 27 anos.
‘Minha
paixão é trabalhar. Às vezes, penso: será que não chegou a hora de parar?
Chegou não. Comecei aos oito anos na roça. Não consigo ficar parado em casa’, diz
ele. Na cidade que vem sendo apresentada a ele desde os anos 1940, arranjou o
primeiro emprego como ‘rala-pescoço’ –servente de pedreiro– na Lapa, zona oeste
da capital. Logo, tornou-se garçom do antigo Ca'd'Oro.
Foi um
pulinho para virar maître. Diz, sorrindo: ‘Servi de reis
a plebeus’. Nesta vida, sabe bem, nem tudo é trabalho. Seu Ático guarda um
segredinho que gosta de compartilhar bem baixinho, quase ao pé do ouvido, na
tentativa de explicar sua longevidade: ‘É o amor de uma mulher’, sorri, com certo
constrangimento, ao referir-se à dona Dolores, a mulher com quem é casado há 60
anos.
‘Ela nunca
me disse uma palavra feia. Nem eu disse a ela’, afirma o baiano. Teve três
filhos, que lhe deram cinco netos e três bisnetos. ‘Se contar, ninguém acredita:
nunca brigamos’. Acha que a mãe, Francisca, que morreu em 1982 aos 92 anos,
também ajudou. ‘Mais que tudo’, diz ele, ‘é não ficar parado’.
Semianalfabeto
–estudou por 45 dias em sua terra natal, Monte Santo, aprendeu a memorizar as
palavras no painel dos ônibus. Da avenida Faria Lima, perto do restaurante
Parigi, onde trabalha, segue para o Tucuruvi. De lá, para Guarulhos, numa
viagem de duas horas. Não reclama. ‘Para onde precisar ir, eu vou, me viro,
pergunto e chego!’
Maximiano Lopez Rodriguez, 90, morador do
Tucuruvi, na zona norte
|
Por onde
anda no sobrado em que vive ‘solo’, a música o acompanha. Em volume civilizado,
o iPad está sempre ligado num bolero do trio mexicano Los Panchos. Quando não,
a cantoria fica sob a responsabilidade de Paquito, 4, o inseparável canário. O
passarinho tomou conta do quintal depois que seu antecessor, aos seis anos de
vida, decidiu permanecer calado. Na ocasião, em 2008, morria a mulher de
Maximiano, Maria Del Carmen.
Paquito 1º
ainda viveu mais quatro anos, sem jamais levantar um pio. Seu dono, ao
contrário, segue falante. Gosta de conversar com Paquito 2º e ainda reserva um
dedinho de prosa para as plantas do jardim, hábito que herdou da mulher. As
conversas, é bom dizer, são sempre em espanhol com o forte sotaque madrileno
que não perdeu desde 1958, quando chegou aqui. De início, trabalhou como
pedreiro, antes de ter a sua própria equipe de funcionários, à qual se dedicou
até os 65 anos.
Em caso de
dúvida, ele sacava do infalível ‘portunhol’ e pronto: o azulejo estava
assentado direitinho, do jeito que queria. Hoje, ‘tranquilo, tranquilo’, como
gosta de dizer, dispensa malabarismos linguísticos. Em bom espanhol, confessa: ‘Nunca
me he sentido brasileño’ ["Nunca me senti brasileiro"].
Não abre mão
de uma taça de vinho, adora torcer para o Real Madrid e se emociona ao falar do
amor das duas filhas e dos quatro netos –os genros, é verdade, não o empolgam
tanto. Embora diga não se sentir brasileiro, seu time do coração é o
Corinthians, o que o integra numa das maiores torcidas do país. ‘Não sou
fanático’, avisa. Nessas horas, é de bom-tom evitar discussão. Melhor
acompanhá-lo na gostosa gargalhada e voltar a ouvir a música de Los Panchos.
Fany Corrêa Cavalcanti, 93, moradora de Anália Franco, na zona leste |
Os três
filhos costumam brincar e dizer que ela ‘é terrível’. O adjetivo foi a tradução
que eles fizeram das palavras do pai deles, morto há 18 anos, que costumava
disparar: ‘Fany, você tem coragem de mamar em onça parida’.
Para uma
mulher que nos anos 1940 peitou o marido e abriu sua própria loja e, depois de
ver a cria formada, pediu licença e foi estudar, formou-se em educação
artística e virou professora, a onça não passava de um gatinho. Serelepe, Fany
não para. Dias desses, voltou às aulas de inglês. ‘Do you like coffee?’,
pergunta.
Anda bolando
sua própria exposição de aquarelas. ‘Quero fazer algo que expresse o meu
interior’. A prioridade é aprender.
Namoro está
fora do radar. O último deles rolou três anos atrás. Antes de engatar qualquer
proposta, fez questão de certificar-se de que o candidato, de dentes
impecáveis, não tinha mau hálito. Mas a relação não foi adiante. ‘Me sufocava’.
Mais: ‘Ele ganhava menos que eu’. ‘Será que posso falar isso?’, pergunta. ‘Ultimamente
ando me policiando, porque a língua é um veneno’, ensina, com a experiência de
quem sempre disse o que lhe deu na telha. ‘Eu era como uma criança sem educação’.
Mudar de
personalidade está fora de cogitação. ‘Sempre fui muito espontânea. Ainda mais
hoje, que sou um nova mulher’.
Julieta Strefezza Ribeiro, 96, moradora de Higienópolis, na região central |
‘Sabe o que
atrai as pessoas?’, pergunta, com ar professoral, para, em seguida, ela mesma
responder: ‘A alegria. Se você é triste e chato, ninguém vai te querer por
perto’.
Se tem uma
coisa que Julieta não suporta é passar por chata e, aí, ser ignorada. ‘Detesto
solidão’, diz, fechando a cara.
Mãe de
quatro filhos, avó de dez netos e nove bisnetos, viúva há 38 anos, segue na
vida ‘bailando, bailando, bela, bela’. Dona cativa da mesa 78 do Clube da
Amizade, na Lapa (zona oeste), ela costuma passar os domingos, das 16h às 21h,
dançando por lá.
‘Me enche de
alegria. As pessoas me procuram para conversar, falar de seus problemas, para
ouvir uma palavra de conforto’.
O número
escolhido da mesa do baile tem um propósito: era o da casa onde ela morou no
bairro do Limão, de 1980 a 2017, antes de se mudar para Higienópolis. ‘Gosto
dele. É peru ou pavão no jogo do bicho?’, pergunta, dando uma longa gargalhada.
No meio da
conversa, Julieta pede ao repórter que fale mais alto. ‘Nesta altura da vida, a
audição não é mais a mesma’.
Nem a
memória. Para evitar esquecimentos, ela toma nota de tudo de que precisa num
bloco de papel, deixado ao lado do criado-mudo. Lá está o horário de tomar os
remédios para pressão, para manter o colesterol equilibrado e para o coração.
Neta de
italianos, não esconde a saudade de cozinhar. ‘Sinto falta. A polpetta e a berinjela recheada que eu fazia eram uma delícia,
sem falar no bolo de cenoura’, gaba-se.
‘Você sairia
daqui outra pessoa, bem mais feliz, se provasse da minha comida’.
Texto:
Roberto de Oliveira | FSP
(JA, Mai18)