Intelectual parisiense
foi editor de Proust, galerista de Matisse, e escrevia notícias de 135
caracteres
Félix Fénéon, 1901, por Maximilien Luce, 1858-1941 |
Félix
Fénéon, intelectual que viveu em Paris há cem anos, escreveu mais de 1.200
notícias de jornal que caberiam em um tuite. Com preferência pelos bastidores,
foi editor de Rimbaud e Proust, era o galerista de confiança de Matisse e
lançou James Joyce na França.
Cem anos
antes de o Twitter existir, já estava em ação um dos melhores tuiteiros da
história: o crítico de arte Félix Fénéon (1861-1944), que de maio a novembro de
1906 foi encarregado pelo jornal parisiense Le Matin (a manhã) de reduzir para
135 caracteres as informações que chegavam à Redação na última hora.
Suas
‘notícias em três linhas’ envolviam fatos cotidianos da França, desde pequenas
tragédias de desconhecidos até notas sobre o mercado financeiro e o comércio
marítimo. Saíam publicadas na seção ‘faits divers’ (fatos diversos), um espaço
pouco prestigiado do jornal pelo reduzido espaço que oferecia para elucubrações
intelectuais e aprofundamento crítico.
Devido ao
sucesso de seu ‘haikai jornalístico’, Fénéon viria a receber a alcunha de ‘precursor
do Twitter’.
Exemplos de notas escritas por Félix Fénéon em
1906. Cada uma tem 135 caracteres (em francês).
Faz sentido,
embora não seja verdade: não há qualquer relação entre os 140 toques da rede
social americana (recém-ampliados para 280) e a restrição tipográfica com a
qual o parisiense convivia. Ele simplesmente tinha três linhas de 45 caracteres
cada para escrever suas notas.
Embora não
ocupasse um local nobre e não assinasse os textos, Fénéon dedicou-se com afinco
à tarefa.
Nos seis
meses em que fez turno vespertino no Le Matin, produziu mais de 20 notas por
dia —‘notícias (geralmente más) de outras pessoas, servidas em palitos de
aperitivo’, como definiu Marilyn Johnson, autora de ‘The Dead Beat: Lost Souls,
Lucky Stiffs, and the Perverse Pleasures of Obituaries’ (a batida morta: almas
perdidas, mortos de sorte e os prazeres perversos de obituários).
Os petiscos
noticiosos de Fénéon teriam permanecido anônimos, não fosse por sua amante
Camille Plateel, que colou cada recorte de jornal num álbum. O material foi
encontrado depois da morte do autor pelo amigo Jean Paulhan (1884-1968, membro
da Academia Francesa), que publicou a compilação em 1944 —e lançaria também o
livro ‘F. F. ou le Critique’ (F. F. ou o crítico) pela editora Gallimard em 1945.
Somente
agora os 1.210 microtextos chegaram ao Brasil no livro ‘Notícias em Três Linhas’
(Rocco, 2018, R$ 44,90, 192 págs.). O material ali reunido pode ser apontado
como um dos melhores espécimes do que veio a se batizar de twitteratura no
século 21.
A
redescoberta póstuma de Fénéon não vem sem ironia. Virtualmente desconhecido
hoje em dia, ele foi uma figura importante no círculo cultural de seu tempo,
mas viveu à sombra de nomes ilustres, atuando em grande parte nos bastidores.
Retrato de Félix Fénéon feito por Paul
Signac em 1890
|
No artigo ‘The
Hidden Master of the Human Comedy’ (o mestre oculto da comédia humana),
publicado na New York Review of Books, o crítico belga Luc Sante escreveu: “As
pessoas têm recortado notas [de jornal] por sua estranheza e humor geralmente
indesejado desde que o ‘fait divers’ surgiu no início do século 19, mas elas
raramente foram consideradas textos literários atribuíveis a um autor. Estas,
contudo, são trabalho de um só homem, um grande estilista literário que
escreveu pouco e publicou menos ainda, e que ocupa um lugar peculiar na
história cultural francesa”.
Nascido na
Itália e criado no interior da França, Fénéon se mudou para Paris em 1880 para
trabalhar no Ministério da Guerra, embora fosse anarquista e antimilitarista. A
combinação sui generis durou 13 anos e terminou num episódio que ficou famoso:
o julgamento dos 30, no qual ele e outros 29 opositores do governo foram
acusados de participar de um ataque a bomba ao restaurante Foyot, em abril de 1894.
Fénéon foi
preso depois de a polícia encontrar em seu escritório um frasco de mercúrio e
uma caixa de fósforos com 11 detonadores. No julgamento, acompanhado de perto
pela mídia local, ele deu rara demonstração pública de irreverência, fazendo
piadas com procuradores e juízes, como relembra Eira Rojas em “A Twentieth
Century Man —Félix Fénéon, Surrealist Mentor” (um homem do século 20 —Félix
Fénéon, mentor surrealista):
Juiz: Quando sua mãe foi interrogada, ela disse que
seu pai havia encontrado esses detonadores na rua.
Fénéon: Isso é possível.
Juiz: Isso não é possível. Ninguém encontra
detonadores na rua!
Fénéon: E, contudo, o sr. Meyer, juiz de instrução, me
disse outro dia: ‘Você devia ter jogado esses detonadores pela janela’. Então,
veja que alguém poderia sim encontrar esses objetos na rua.
Sem maiores
provas de sua participação e com testemunhas que incluíram o poeta Stéphane
Mallarmé (1842-1898), Fénéon foi absolvido, mas perdeu o cargo no governo.
Assumiu, então, a função de editor da Revue Blanche (revista branca), uma das
publicações artísticas e literárias mais prestigiadas da época.
A revista
contava com escritores e artistas de peso: André Gide (1869-1951, Nobel de
Literatura em 1947) era responsável literário, Claude Debussy (1862-1918,
compositor que revolucionou a música clássica do século 20) assinava a crítica
musical e Marcel Proust (1871-1922, ‘Em Busca do Tempo Perdido’) colaborava com
frequência.
‘Félix Fénéon à la Revue Blanche’, 1896, de Félix Vallotton |
A entrada na
Revue Blanche consolidou a integração total de Fénéon ao ambiente de agitação
estética e política da Paris do final do século 19, início do século 20.
Ele foi o
primeiro editor da obra magistral ‘Iluminações’, apogeu de Jean Nicolas Arthur
Rimbaud (1854-91), e tornou-se amigo do pintor Édouard Manet (1832-83), figura
essencial da transição do realismo ao impressionismo, e do poeta maldito Paul
Verlaine (1844-96), cuja musicalidade e fluidez influenciaram toda uma geração
de escritores, artistas plásticos e compositores.
A revista
fechou em 1903 por razões financeiras, mas Fénéon continuou atuante. Passou a
editar escritores como Proust, Paul Valéry (1871-1945, indicado 12 vezes ao
Nobel de Literatura) e Guillaume Appollinaire (1880-1918, autor de importantes
manifestos de vanguarda, a quem se credita os termos cubismo e surrealismo).
Em 1906,
como diretor artístico da galeria Bernheim-Jeune, representou o paisagista Paul
Signac (1863-1935) e Henri Matisse (1869-1954) —foi o único galerista em quem o
artista confiou.
Sua participação
na cena cultural ainda incluiu a primeira publicação de James Joyce na França (‘Retrato
do Artista Quando Jovem’, em 1924), além da curadoria da exposição inaugural
dos futuristas em Paris e da primeira mostra individual de Georges Seurat (1859-91,
ícone do pontilhismo, um dos movimentos neoimpressionistas).
Colecionador
dedicado, também reuniu um dos maiores acervos pessoais do que se convencionou
chamar arte primitiva, originária da África, da Oceania e das Américas.
Por sua
proximidade com o meio artístico, Fénéon teve seu retrato feito por diversos
pintores da época, entre os quais Signac e Toulouse-Lautrec (1864-1901). As
imagens o mostram quase sempre de perfil, o que revela algo da personalidade
esquiva do intelectual parisiense.
Caricatura de Fénéon feita por Toulouse-Lautrec, ~ 1896 |
Em vida, não
publicou nenhum livro. Assinou somente a monografia ‘Les Impressionistes en
1886’ (os impressionistas em 1886), na qual cunhou o termo neoimpressionista.
Escreveu outros textos sob pseudônimo, incluindo um manifesto antipatriótico
alertando sobre testes militares antes da Primeira Guerra.
Convidado a
publicar seu material do Le Matin, respondeu: ‘Eu aspiro somente ao silêncio’.
Ainda assim, algumas de suas notas foram incluídas no ‘Almanach Surréaliste du
Démi-Siècle’ (almanaque surrealista do meio século, 1950), de André Breton e
Benjamin Péret, acompanhadas de ilustrações feitas com batata esculpida
(técnica comum à época).
Fénéon é
apontado por diversos críticos como integrante da primeira onda do modernismo
literário, uma qualificação que não surpreende. Ele demonstra em ‘Notícias’
precisão linguística aliada a um senso de timing que deixa para o último
momento o dado que coroará o texto.
Com a
leitura das notas, o leitor é levado à belle époque parisiense e conhece um
pouco sobre aquele tempo, com atropelamentos por bondes e trens, mortes por
envenenamento, acidentes com armas, feminicídios, um surto de febre aftosa.
Mas o fundo
fático ganha camada adicional com a inteligência e o estilo do autor
anarquista, cujos principais traços de personalidade transbordam do texto: a
revolta contida, o humor ácido, sua gentileza e crueldade.
As histórias
comezinhas de desconhecidos são o pano de fundo para que Fénéon registre os
absurdos da existência humana, revele inconsistências e faça questionamentos
que tornam tudo familiar ao leitor do século 21.
De viés, ele
ataca o establishment. Indica contradições entre discurso e prática, rebela-se
contra a igreja e o Estado, aponta para a eterna dicotomia entre patrões e
trabalhadores, população e poder político-financeiro, miséria e ostentação.
A produção
impressiona também por sua constância. Todo dia, Fénéon lidava com a realidade
em sua forma mais crua, no jornal, e fez literatura diária ao extrapolar o
caráter informativo dos textos.
Em ensaio no
livro ‘Ética e Pós-Verdade’ (Dublinense, 2017), Cristovão Tezza escreve: ‘A
realidade é um dado prévio que só se deixa ver por enigmas e só pode ser
pressentido; escrever é revelar ou, mais precisamente, deixar o mundo
revelar-se pelas mãos do escritor, ou do poeta’.
Fénéon
retira da matéria-prima realidade o extrato de dramas humanos atemporais.
Pensando bem, o título do seu livro poderia ser ‘Poemas em Três Linhas’.
Textos de
Fénéon podem ser considerados belos exemplares da twitteratura
Por
coincidência histórica, exatos cem anos depois de Fénéon escrever suas notícias
em três linhas, surgiu nos EUA a plataforma online que se diferenciava de
outras por restringir o espaço de manifestação dos usuários a 140 caracteres.
Lançado em
2006, o Twitter estabeleceu seu limite com base no tamanho do SMS —cuja sigla,
cunhada pelo engenheiro alemão Friedhelm Hillebrand, significa ‘Short Messaging
Service” (serviço de mensagens curtas). Inventada em 1985 para aproveitar um
canal de rádio secundário desocupado nos celulares, a mensagem de texto podia
conter 160 caracteres.
Como a rede
social surgiu antes da popularização dos tablets e smartphones, a maneira mais
comum de enviar tuites era pelo telefone, na forma de SMS. A plataforma, então,
destinou 20 caracteres para a identificação do usuário (o símbolo @ seguido do
nome) e os 140 restantes para o texto em si.
Na origem, o
Twitter nasceu como um convite ao compartilhamento da própria vida do usuário
em resposta à pergunta ‘o que você está fazendo
agora?’. Com o passar do tempo, uma tendência ficou clara: a maioria
das pessoas estava mais interessada em acompanhar a vida alheia, cadastrando-se
como seguidor de celebridades e outras figuras públicas.
Em 2009, a
questão inicial foi substituída por ‘o que está
acontecendo?’, deixando mais claro o papel da rede como fonte de
informação. Menos diário e mais jornal.
O Twitter
reforçou sua vocação informativo-jornalística, mas isso não impediu que pessoas
se interessassem em explorar a plataforma como campo de aventura literária.
(Fénéon já havia deixado claro, um século antes, que restrição de espaço não
implica texto rasteiro.)
Surge a
chamada twitteratura —um formato que também tem raízes no SMS.
Inaugurado
em 2003, no Japão, o ‘keitai shousetsu’ —cuja tradução literal é ‘romance de
celular’— consiste em melodramas e enredos de amor redigidos e enviados por
mensagens de texto. O gênero fez tanto sucesso que, quatro anos depois, os
cinco livros mais lidos no país eram versões impressas de narrativas escritas
no telefone.
Em 2008, já
com o Twitter em atividade, o premiado jornalista do New York Times Matt
Richtel aventurou-se com ‘twiller’: uma história de suspense (thriller, em
inglês) contada por meio de tuites que, aos poucos, desvendavam o mistério para
os seguidores.
‘Essa
estratégia, contudo, significou que havia pouca continuidade explícita entre os
tuites, resultando numa experiência que oferecia pouca possibilidade de imersão
ou absorção pela narrativa’, afirmou Bronwen Thomas, da Universidade de
Bournemouth (Reino Unido), em ‘140 Characters in Search of a Story’ (140
caracteres em busca de uma história).
Declaração
semelhante fez o professor americano Robert K. Blechman numa entrevista em
2017. O autor de ‘Executive Severance’ (demissão executiva), primeiro ‘twitstery’
—composição de twitter com mistery (mistério)—, publicado em 2011, disse: ‘Eu
criei um experimento literário: seria possível manter a estrutura narrativa e
atrair um público com 140 caracteres de cada vez? Depois de 15 meses e mais de
800 tuites que compõem esse livro do Twitter, posso dizer com confiança que a
resposta é não’. (Fénéon certamente discordaria.)
Blechman
acabou publicando o material no formato por ele considerado mais eficaz: um
livro tradicional. E ainda fez do volume o primeiro da bem-sucedida Trilogia
Twitstery, à qual se juntaram ‘The Golden Parachute’ (o paraquedas dourado,
2016) e ‘I Tweet, Therefore I Am’ (eu tuito, logo existo, 2017).
Mas a
twitteratura se relaciona com a literatura clássica numa via de duas mãos.
Alexander Aciman e Emmett Rensin, da Universidade de Chicago, fizeram o caminho
inverso e lançaram, em 2009, ‘Twitterature: The World’s Greatest Books in
Twenty Tweets or Less’ (twitteratura: os maiores livros do mundo em 20 tuites
ou menos). ‘Por que o Cláudio está de novo me dizendo o que fazer? Você não é
meu verdadeiro pai! Na verdade, você matou meu pai. :(‘ é um dos tuites de Hamlet, do clássico de
Shakespeare.
No Brasil,
houve lançamentos de coletâneas de melhores tuites, que compilam postagens de
diferentes usuários —em sua maioria, trabalhos esporádicos e frases de efeito,
quase aforismos, publicados na rede social. Esse material, porém, não revela
constância como a de Fénéon, e uma produção autoral verdadeiramente literária
ainda é incipiente.
O que as
experiências de twitteratura têm em comum é o desejo de usar a plataforma para
uma criação literária clássica: picota-se o conteúdo de uma narrativa em tuites.
Assim, o intelectual francês nascido no século 19 se torna um dos maiores
expoentes de um movimento que lhe é póstumo, por ter criado, em cada notícia,
uma obra em si, feita sob medida para o limite de caracteres.
Em 2017,
quando o tuite foi ampliado para 280 caracteres, Aliza Rosen, gerente de
produtos da rede social, escreveu: ‘Tentar amontoar seus pensamentos em um tuite
—todos já passamos por isso e é um saco. (...) Às vezes eu tenho que remover
uma palavra que contém um significado ou emoção importante, ou então desisto de
enviá-lo’.
Fénéon
certamente protestaria.
Texto: Helen Beltrame-Linné, 37,
graduada em direito pela USP e cinema pela Sorbonne Nouvelle (Paris),
ex-diretora da Fundação Bergmancenter (Suécia), é editora-adjunta da
Ilustríssima - FSP.
(JA, Mai18)