Ela já tinha passado dos cinquenta anos.
Um dia acordou no meio da noite, começou a pensar que a sua vida atual
consistia numa rotina recorrente. Todos os dias eram mais ou menos iguais,
tirando uma coisa ou outra. Refletindo ainda mais, chegou à conclusão de que
sempre foi assim, exceto pelos eventos naturais, aqueles que ocorrem na vida de qualquer um: começar a frequentar
a escola, primeiro namorado, formatura, primeiro emprego, aumento de salário, noivado, compra do primeiro apartamento, casamento,
filhos, desemprego, negócio próprio, etc.
Mais tarde, procurando se informar
descobriu que
“O que faz a diferença numa vida,
individual ou coletiva, são os atos. E os atos são raros.” (Jacques Lacan)
Um ato não é apenas algo inédito
(muitas novidades são repetições disfarçadas), mas é algo que transforma a pessoa
radicalmente, que produz um novo
sujeito. Não é pouco frequente que a maioria passe a vida inteira sem produzir
ato algum, só cumprindo o que lhe é destinado, só preenchendo as expectativas da
comunidade em que está inserida.
Era isso mesmo que acontecia com ela.
Quando ocorria um evento, parecia que tudo havia mudado. Entretanto, logo logo,
entrava na rotina novamente, numa constante repetição que, por não ser um
retorno exatamente idêntico, inicialmente passava despercebida. Como sair disso? Como evitar
a sensação de estar sempre vivendo o mesmo dia?
A verdade é não poderia sair por aí
tendo atitudes que não tinham nada a ver com ela. Mas, por outro lado, se não
as tivesse, como poderia se transformar num nova mulher? E ela tinha
consciência que é isso que a sociedade moderna valoriza - o indivíduo que cria suas próprias regras, que
sai do destino coletivo comum, enfim, que faça a diferença.
Porém, nem toda mudança, nem toda novidade
é boa. E a vida repetitiva, trivial pode
ser interessante, digna. Por que não?
Embora parecesse que estivesse desperdiçando a sua vida numa constante
repetição, apenas cumprindo o seu destino ‘chato’, tinha nostalgia de muitos momentos
vividos. Foram momentos felizes, que valorizaram a sua existência, em que não
se sentia como agora – aflita, angustiada por encontrar um ato transformador,
libertador. Libertador? Por que não se 'libertar' livrando-se dessa neura e passar a ter os sonhos normais que a maioria das
pessoas tem nessa fase da existência? Ter como objetivo uma aposentadoria, criar
a possibilidade de poder eventualmente descansar num lugar tranquilo e
inspirador, torcer pelos sucesso dos filhos, dos netos, ...?
Pensando assim, tirou da cabeça, definitivamente,
a obsessão que vinha alimentando - a necessidade de quebra da rotina. Passou a
se empenhar em aproveitar melhor da companhia das pessoas interessantes da sua
relação, a participar e promover atividades que lhe davam prazer, a se cuidar
mais, e a cuidar dos que lhe eram caros.
Atualmente, já não acorda mais durante a noite, não perde
o sono, preocupada em descobrir o que deveria fazer para ser feliz. Ela já é.
“Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça de que a felicidade é um sentimento simples, que você pode encontrar e deixar ir embora por não perceber.” (Mário Quintana)
(JA, Jun14)