Ano pouco lembrado, mas decisivo para o século 20.
Ponto de
virada, período teve eventos fundamentais que ainda hoje reverberam pelo mundo,
na construção da guerra e da paz
Existem anos, ao longo da história do século 20, que nem mesmo precisam ser sublinhados, dada a estridência dos fatos que os iluminaram.
Em 1917, uma greve
de operários em Petrogrado iniciou a revolução bolchevique na Rússia dos
czares. A quebra da Bolsa de Valores dos Estados Unidos.
Em 1929, abriu
caminho para a Grande Depressão.
Em maio de 1968, o protesto
de um grupo de estudantes da Universidade Paris-Nanterre transformou a capital
da França em um campo de batalha e, então, a ‘imaginação chegou ao poder’, como
anunciava um dos slogans da turma.
Em 1989, a queda do
Muro de Berlim representou o fracasso do sistema autocrático e da economia dos
satélites da União Soviética, resultando no desmanche do comunismo no leste da
Europa.
Há, contudo, um período de
doze meses discreto, do qual pouco se fala — o ano de 1947, um ano
pouco lembrado, mas decisivo para o século 20
Ponto de virada, período que,
independentemente de ser o ano do meu nascimento, foi palco de eventos
fundamentais que ainda hoje reverberam pelo mundo, na construção da guerra e da
paz.
Dois anos depois do fim da 2ª Guerra, o
mundo — a Europa, em particular — estava devastado, mas ainda havia esperança.
O Tratado de Paz de Paris seria assinado no início de fevereiro pelas forças
aliadas, e cinco países derrotados: Itália, Hungria, Romênia, Bulgária e
Finlândia.
Era uma época em que tudo parecia possível, porque tudo — fosse bom ou ruim — aparentemente já havia acontecido. Mas não. ‘Foi o início de tudo’, disse a jornalista e escritora sueca Elisabeth Åsbrink.
Ela é autora de ‘1947’ (Editora Âyiné),
livro no qual usa recursos literários, ao seguir os passos de Per Engdahl,
político sueco de extrema direita, apoiador do nazismo, para resgatar os
principais fatos e realizações daqueles 365 dias fundamentais.
‘Foi um momento de criação de
muitas posturas que perduraram e fazem parte das nossas vidas até hoje’. Deu-se
a gênese de novos caminhos na política, mas também o nascimento de movimentos
da sociedade, comezinhos, porém, fundamentais.
Na moda, Christian Dior lançou o movimento ‘The New Look’, literalmente ‘o novo visual’. Resposta aos figurinos antiquados herdados do período bélico, os novos desenhos eram caracterizados por cinturas justas, saias rodadas e ombros acolchoados — como no famoso bar suit, o emblemático conjunto de tailleur e saia rodada da coleção.
Na literatura, George Orwell, pseudônimo do jornalista britânico Eric Blair, refugiou-se na Ilha de Jura, na Escócia, para avançar na escrita do clássico ‘1984’ — e então descobrimos que em 1947 nasceu também a ideia do superestado, vigiado por um Grande Irmão, evidente crítica ao autoritarismo soviético.
No bojo da efervescência cultural a escritora feminista e filósofa francesa Simone de Beauvoir embarcava para os Estados Unidos, onde percorreu alguns estados fazendo palestras e combinando encontros. Um deles, com o escritor (e amante) americano Nelson Algren, em Chicago, que marcaria profundamente sua vida e a inspiraria a escrever ‘O Segundo Sexo’, marco do início do feminismo moderno.
Vivia-se a rede de mudanças
debaixo das garras afiadas dos Estados Unidos e da União Soviética, como se o
planeta fosse explodir no dia seguinte. A Doutrina Truman, declaração de
política externa americana que prometia apoio à Grécia e à Turquia na
resistência aos movimentos comunistas, pôs calor na Guerra Fria.
O Plano Marshall, que
canalizou milhões de dólares em ajuda aos países europeus para reconstruírem as
suas economias, fez a balança se mexer. E, como convinha não passar uma
borracha no passado, atalho para o futuro, um advogado polonês especializado em
direito internacional, Raphael Lemkin, cunhou o termo ‘genocídio’ para
tipificar o crime de mortes em massa. ‘Tantas coisas aconteceram…’, resume
Elisabeth Åsbrink, com a simplicidade dos grandes raciocínios.
E agora, como ver 1947 aos olhos
de 2023? A paz é uma utopia, Dior ainda ecoa com elegância, 1984 está
presente. O feminismo de Simone cresceu e apareceu, como convém, e genocídios
ainda acontecem.
Vivemos melhor, sem dúvida,
do que há 76 anos, sobretudo em virtude dos avanços promovidos
pela inclusão digital, mas a história do século 21 anda, e andará, de mãos dadas
com o ontem.
Fonte: Alessandro Giannini |
Veja
(JA, Set23)