Às 5 horas, naquele 6 de agosto, há exatos 75 anos, o pastor metodista Kiyoshi Tanimoto já estava desperto, e estava ajudando o amigo Matsuo a levar uma pequena carreta de pertences ˗ cadeiras, roupas etc. ˗ para guardá-los na casa de um empresário conhecido, ao abrigo dos bombardeios.
Enquanto empurravam a carreta
até o bairro de Koi, em colina distante do centro, escutaram o alarme de ataque
aéreo ˗ habituados, prosseguiram. Mas quando acabavam de chegar, às 8h10, aterrorizaram-se com um fulgurante clarão sobre Hiroshima inteira.
Estando longe do epicentro,
puderam reagir. Enquanto Matsuo mergulhava nas colchas empilhadas ali,
Tanimoto, entre rochas do jardim, se protegia da saraivada de tijolos e
madeiras. Quando saiu, viu a casa do empresário derrubada. Uma nuvem de poeira
e fumaça escurecia Hiroshima, mas da colina se avistavam incêndios por toda
parte. Árvores desfolhadas, troncos chamuscados.
Tentando voltar para casa,
Tanimoto cruzou com incontáveis feridos. Em farrapos ou praticamente nus,
sobrancelhas queimadas, pele se soltando do rosto ou das mãos. Uma procissão de
fantasmas cabisbaixos, silenciosos, inexpressivos. Mesmo baqueados, muitos
auxiliavam acompanhantes em condições ainda piores.
Ruínas o impediriam de
prosseguir. Desceu então até o rio Ota, um dos que atravessam a cidade. Fugindo
dos incêndios, muitos tinham ido ˗ ou sido levados ˗ para as margens e o parque
adjacente.
Na falta de médicos, Tanimoto, com um grupo de jesuítas, se desdobraria confortando feridos. Encontrou uma pequena jangada. Sem remos, mas com uma vara para impulsionar, passou o resto do dia transportando vítimas até uma unidade de atendimento. Chocado com a visão das chagas, repetia incessantemente para si: ‘São seres humanos’.
Meses depois, escreveria: ‘Pela meia-noite, parei na margem. Esgueirando-me entre feridos prostrados no solo, eu levava um balde de água e lhes oferecia numa caneca. Eles aceitavam, agradecidos. Ninguém gritava nem se lamentava. Na manhã seguinte, muitos estavam mortos. Morreram em silêncio’.
Os cinco dias seguintes,
passou inteiros no parque, atendendo feridos e desabrigados. No dia 15, nas ruínas
da estação ferroviária, acompanharia a multidão em lágrimas escutando, pelo alto-falante,
o Imperador reconhecer a derrota.
Com 40 graus de febre, atribuída a radiações, Tanimoto ficaria um mês acamado, e mais outro convalescendo. Ao voltar, retomou o trabalho pastoral, numa tenda improvisada. Quando obtinha recursos, ia reconstruindo a igreja. Muito tempo depois, ainda continuava enfraquecido.
Essa história está no livro ‘Hiroshima’,
do jornalista americano John Hersey, originalmente uma reportagem de 1946. Há também
as de mais cinco sobreviventes, como o jovem médico Terufumi Sasaki. Em 1986, Hersey foi
reencontrá-los. Cada um seguira sua vida, com diferentes sequelas da tragédia,
mas todos com superações.
Tanimoto havia estudado
teologia nos Estados Unidos. Fluente no inglês, tinha amigos americanos e se
vestia à ocidental, o que chegara a despertar suspeitas.
Depois de restabelecer
contatos nos Estados Unidos, percorreu o país em 1948/49 angariando
recursos para a igreja. Surgiu-lhe então a ideia de criar em Hiroshima um
centro de estudos dedicado ao banimento das armas atômicas e à paz mundial.
No regresso, apresentou seu
plano às autoridades, que não se interessaram. O Japão permanecia sob tutela
americana, e o General MacArthur, comandante militar, proibira que se
divulgassem as consequências das explosões nucleares.
Embora o Parlamento tivesse
aprovado a construção de um memorial em Hiroshima, as autoridades japonesas
receavam complicações com aquele centro da paz que Tanimoto propunha.
Mas ele tinha prestígio entre os metodistas, e com os donativos recebidos em novas viagens, conseguiu finalmente fundar o centro, sediando-o em sua própria igreja.
Capitão Robert A. Lewis,
copiloto do avião Enola Gay que lançou a primeira bomba atômica sobre a cidade
japonesa de Hiroshima
Certa vez na Califórnia, comparecendo a uma emissora de TV para o que seria uma entrevista, foi surpreendido com um programa ‘Esta É Sua Vida’. Apareceram antigos colegas e amigos. Para seu assombro, os produtores também chamaram Robert Lewis, copiloto do avião da bomba atômica ˗ o sensacionalismo falava mais alto que a delicadeza. Titubeando nas palavras - teria bebido -, Lewis relembrou o episódio e estendeu a mão a Tanimoto que, fiel a seu código de urbanidade, conteve o mal-estar e não a recusou.
Museu do Memorial da Paz de Hiroshima
Anos mais tarde, com a
construção de monumentos comemorativos no Parque, inclusive o Museu, as
conferências sobre a paz entraram no calendário de Hiroshima. Tanimoto, porém,
acabou relegado à margem desse movimento ˗ viajando seguidamente ao
estrangeiro, estivera ausente em etapas decisivas. Além disso, o status de
pastor cristão incomodava alguns militantes. Mas, com o tempo, muitos iriam
reconhecer seu pioneirismo, perseverança e coragem no enfrentamento das
restrições.
Ante a tragédia de Hiroshima, não é difícil imaginar, como diria o poeta Virgílio: ‘Sunt lacrimae rerum’. Nos grandes infortúnios, até os seres inanimados parecem chorar.
Parque Memorial da Paz de Hiroshima
Parque Memorial da Paz de
Hiroshima é um parque memorial localizado no centro de Hiroshima, dedicado ao
legado de Hiroshima como a primeira cidade do mundo a sofrer um ataque nuclear
e as vítimas que foram atingidas de forma direta ou indireta pela bomba, cujas
estimativas somam cerca de 166.000 pessoas.
O parque está localizado onde
era um grande centro comercial e residencial que se transformou em um grande
campo criado pela explosão. Todos os anos acontece no parque a Cerimônia do
Memorial de Paz de Hiroshima, em 06 de agosto, mesmo dia do bombardeamento.
O propósito do Parque
Memorial da Paz não é somente lembrar as vítimas, mas também, manter a
lembrança dos horrores do ataque nuclear e defender a paz mundial.
Fonte: A.C. Boa Nova, AMDG | WP
(JA, Ago20)