Autor americano impôs a si uma quarentena para reavaliar a forma como vivemos, e contou tudo em 'Walden', 1854
No lago Walden, Thoreau aprendeu que ‘todo o homem é senhor de um reino, do qual o império terreno do czar não passa de um estado minúsculo’. Se essa quarentena não servir para visitarmos o nosso reino abandonado, para abrir as janelas, para podar o jardim, servirá para quê?
Fonte: João Pereira Coutinho, FSP | WP e Dvs
O escritor americano Henry
David Thoreau, 1817-1862
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Amigos ansiosos, temendo o
efeito da quarentena em suas cabeças, pediram dicas pessoais e literárias para
sobreviver. No meu caso, elas convergem –não tenho nada para lhes oferecer que
não tenha aprendido com ‘Walden’, de Henry David Thoreau.
Obra estranha, essa, para um
urbano-depressivo como eu. Não seria capaz de viver na mata. A natureza, como
alguém dizia, são bichos comendo outros bichos —até o momento em que eles
percebem que o nosso próprio corpo é o melhor manjar.
Sou um eremita das cidades. O
cheiro dos escapamentos é para mim Chanel N°
5. Mas quem disse que ‘Walden’ só
funciona para quem abandonou a civilização e se entregou à vegetação selvagem?
A obra de Thoreau é o relato
de uma pausa —uma quarentena de dois anos e dois meses– em que o autor, em 1845, se propõe ‘viver
deliberadamente’, confrontando ‘os fatos essenciais da vida’.
E o primeiro desses fatos,
para Thoreau e para nós, é a forma mesquinha como vivemos, eternas formigas
correndo de um lado para o outro, alimentando o nosso ciclo de desejos com
novos desejos, que serão sempre impossíveis de saciar. ‘Nossa vida se perde no detalhe’, escreve
Thoreau –até chegar um vírus exótico que acaba momentaneamente com a festa.
Protestamos. Que injustiça!
Sentimo-nos enganados, atraiçoados, perdidos. Mas fomos nós que nos perdemos em
mil tarefas inglórias, sempre em busca dessas ridículas noções de grandeza e
magnificência.
Por falar em formigas,
imagino que esse tal de coronavírus deve olhar para nós como Thoreau olhava
para os insetos, que se guerreavam junto a uma pilha de tocos –seres patéticos
e insignificantes, lutando continuamente entre eles, sem terem noção de sua
própria pequenez.
Para elas, as formigas, o
campo de batalha é Austerlitz, onde se joga o destino de uma civilização. Para
Thoreau, é um espetáculo cômico. E mudo –nem um som lhe chega aos ouvidos.
Perspectiva é humildade –e o
momento pede humildade, amigos.
Mas pede mais. ‘Simplifiquem, simplifiquem’, aconselha
Thoreau. Esse processo de despojamento começa nas pequenas coisas. Até na
mobília, imaginem, que deve ser lida como metáfora para as inutilidades que
fomos acumulando sem desígnio.
Imagino os meus amigos,
encerrados em casa, contemplando pela primeira vez essa coleção de inutilidades,
que só servem para acumular pó em excesso. Sem visitas para impressionar, sem
colegas para enciumar, são apenas objetos mórbidos, monumentos à insegurança
psicológica, e à inferioridade social. Quem precisa deles quando eles não são
mais precisos?
E quem precisa dessas visitas,
ou desses colegas? Não é só a mobília que rouba espaço; os outros, os
figurantes do cotidiano, também nos roubam tempo.
‘O valor de
um homem não está em sua pele, para precisarmos tocá-lo’, escreve Thoreau. Sábias palavras. Quantas das nossas
horas não foram desperdiçadas em contextos sociais, artificiais, superficiais,
como se o valor de um homem dependesse sempre desse gesto canino, de nos
farejarmos mutuamente, para termos a confirmação de que existimos deveras?
Thoreau ensina –nós somos a
nossa primeira companhia. Se não a suportamos agora, se a tememos, se a
desprezamos, dificilmente seremos boa companhia para alguém.
No lago Walden, Thoreau aprendeu que ‘todo o homem é senhor de um reino, do qual o império terreno do czar não passa de um estado minúsculo’. Se essa quarentena não servir para visitarmos o nosso reino abandonado, para abrir as janelas, para podar o jardim, servirá para quê?
Quando perdemos o temor da
solidão, a própria solidão deixa de ser solidão. E o silêncio deixa de ser
silêncio porque passaremos a escutar ‘tudo o que o vento traz’.
Os livros, aliás, também são
dos melhores mensageiros –e o gosto pela leitura é um seguro de vida que dura
toda a vida. Mas os livros, ensina Thoreau, devem ser lidos ‘com a deliberação
e o recato com que foram escritos’.
Não se trata de uma leitura
utilitária, maquinal, trivial, feita para matar as horas. Pelo contrário, a
leitura que alimenta os espíritos famintos, existe para suspender as horas.
Como se a imortalidade fosse possível, ou até desejável.
Aos meus amigos, direi para
lerem Thoreau. E roubarei as palavras do escritor, que em poema exortava
Dirige teu olhar para
dentro de ti
E mil regiões encontrarás
ali
Ainda ignotas. Percorre
tal via
E mestre serás em tua
cosmografia
.
Só assim o inverno acaba e a
primavera chega. As páginas mais sublimes de ‘Walden’ são os capítulos finais,
quando o lago começa o seu degelo, as aves retornam, a vegetação renasce –e o
autor também. ‘Só amanhece o dia para o qual
estamos despertos’, afirma Thoreau.
Amigos, que a quarentena
sirva para aprendermos a estar despertos, e não apenas dispersos. E quando essa
manhã chegar, limpando os medos de agora, que possamos repetir as palavras que
Thoreau tomou de empréstimo aos profetas ‘Onde
estava, ó morte, teu aguilhão? Onde estava, ó túmulo, tua vitória então?’
'Walden’, ou ‘A Vida nos
Bosques’ é uma autobiografia do escritor transcendentalista Henry David
Thoreau. A obra é considerada, simultaneamente, como uma declaração de
independência pessoal, uma experiência social, uma viagem de descoberta
espiritual e um manual para a autossuficiência.
Publicado em 1854, Walden é
um manifesto poético contra a civilização industrial, que então ganhava força
nos Estados Unidos.
Diante da crescente
complexidade da vida social estadunidense, derivada do crescimento exponencial
da industrialização e urbanização, Thoreau, insatisfeito com o modo de vida na
sociedade, e procurando eliminar o desperdício e a ilusão, propõe o retorno ao
simples.
Assim, inspirado pela
filosofia do confucionismo, retira-se em 1845 para a floresta, onde constrói
com as próprias mãos, sua casa e seus móveis, passando a viver com o mínimo
necessário, e em intenso contato com a natureza. Isola-se da sociedade, não por
misantropia - posto que recebe visitas e também as retribui - mas com o
propósito de obter uma maior compreensão da sociedade, e de descobrir as
verdadeiras necessidades essenciais da vida.
Através dessa experiência,
que durou cerca de dois anos, vivendo em pleno contato com a natureza e com os
livros, Thoreau pôde confirmar, não apenas que uma vida simples e humilde é
viável em termos financeiros, mas construiu uma nova visão, quase mística, do
Homem.
‘Walden’ não somente relata a
estadia do autor na floresta, mas também analisa e critica a sociedade moderna
do século XIX. Incita o espírito crítico do leitor, levando-o a uma reflexão
profunda, acerca dos modos de vida, e propondo-lhe novas perspectivas sobre o
conceito de Liberdade, e sobre a própria Vida.
O livro tornou-se uma das mais célebres obras do autor,
e é utilizado como referência, tanto para a ecologia quanto para o movimento beat,
e o movimento hippie.
Fui para os bosques viver de livre vontade,
Para sugar todo o tutano da vida…
Para aniquilar tudo o que não era vida,
E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!
(JA, Abr20)