Cancelar a charge editorial pode ser o
mesmo que cancelar a própria voz
Uma charge do português
Antonio Moreira Antunes, publicada recentemente na edição internacional do
jornal The New York Times, mostrava o presidente Donald Trump, de quipá e
óculos de cego, sendo conduzido por um cachorro com o rosto do
primeiro-ministro de Israel, Binayamin Netanayhu. Há dias, o jornal anunciou
que estava suspendendo sua seção diária de charges editoriais.
O motivo para isto, segundo
uma fonte, foi a grita da comunidade judaica pelas redes sociais, considerando
a charge antissemita. É de se imaginar o volume dessa grita sobre um jornal
que, até então, todos víamos como infenso a qualquer ameaça.
Charge do artista português António Moreira Antunes considerada antissemita |
Nos anos 50 a 70, a imprensa
americana teve um quadrinista, Walt Kelly, cuja tira diária, ‘Pogo’, se passava
num brejo e em que os personagens, desenhados como animais cruéis, podiam ser a
Ku-Klux-Klan, o premiê soviético Nikita Kruchev, o ditador Fidel Castro, o
presidente Richard Nixon, seu vice Spiro Agnew e os generais da guerra do
Vietnã. Todos os dias, ‘Pogo’ era ofensivo para alguém. Eu me pergunto se Kelly
poderia produzi-lo hoje.
A imprensa, desde que nasceu,
há uns 500 anos, convive com a pressão. Faz parte do risco. Faz parte também
resistir, sob pena de se reduzir a um armazém de secos e molhados, como dizia
Millôr Fernandes. Mas nunca houve uma pressão como a atual.
As grandes massas
são moralistas e, agora, têm voz. O problema de um veículo se submeter a elas é
que não há assunto sobre o qual elas, as massas, não tenham opinião.
Para mim, a melhor charge até
hoje foi produzida pelo nosso Jaguar. Mostra Cristo, na cruz, dizendo a alguém
aos seus pés: ‘Hoje não vai dar, Madalena. Estou pregado’. Quantos bilhões não
se ofenderiam atualmente com ela? Pois, na época, o mundo não acabou.
Cancelar a charge editorial
pode ser apenas o primeiro passo para um jornal cancelar de vez o editorial —a
sua própria voz.
Fonte: Ruy Castro
| FSP
(JA, Jun19)