"O terrorismo visitou
Londres -mais uma vez. Nos dias seguintes, os sobreviventes falaram. Um deles
correu mundo em fotografia que se tornou icônica: vemos um rapaz de vinte e
tantos anos, com barba, sentado numa cadeira de rodas, embrulhado num cobertor.
O nome é Francisco Lopes,
26, português. E, desnecessário será dizer, a mídia lusa assaltou o patrício
para entrevistas e testemunhos. Não sei o que esperavam escutar. Francisco, que
vive e trabalha em Londres, limitou-se a banalidades. Mas como são belas as
banalidades!
Para começar, tudo lhe
pareceu rápido, assustadoramente rápido: ele já estava no fim da ponte de
Westminster, junto ao Big Ben, quando sentiu o bafo do carro sobre o ombro.
Atingido pelo terrorista, verificou que estava vivo. Ferido, mas vivo.
Levado para o hospital,
seguiram-se os curativos e, depois dos curativos, as primeiras impressões. ‘Sinto
que tenho uma segunda vida’, disse ele aos jornalistas. E agora? O que fazer
com essa ‘segunda vida’?
O jovem, na sua
simplicidade, confessou: quer ir a Portugal, visitar a avó que não vê há anos.
E, no futuro, não devotar toda a existência ao trabalho.
Sim, o tempo tudo cura.
Até a lucidez. Daqui a semanas ou meses, é provável que o Francisco, novamente
com o corpo funcional, já esteja de volta à velha roda de hamster onde todos
pedalamos em direção a lado nenhum.
Ou talvez não. Eis uma
boa pauta para os jornalistas: saber o que foi feito daquela ‘segunda vida’.
Porque nem todos têm a graça de receber uma.
Que o diga Bronnie Ware.
Quem? Explico: Bronnie Ware é enfermeira na Austrália, especialista em cuidados
paliativos para doentes em fase terminal. E, anos atrás, em pequeno livro da
sua autoria (‘The Top Five Regrets of the Dying’), a enfermeira resolveu
partilhar com os vivos quais os cinco maiores arrependimentos daqueles que viu
morrer.
Instintivamente, pensamos
em gostos extravagantes: viagens que não se fizeram; casas onde não se viveram;
dinheiro que não se ganhou. E, para os cínicos, todos os patrões aos quais não
se removeu o escalpe.
Para surpresa da
enfermeira, os arrependimentos eram outros. Banais, como as palavras do
Francisco. E recorrentes. Como se a proximidade da morte, ‘dissolvendo o ego’
(bela expressão da autora), dotasse o ser humano de uma clareza essencial.
Essa clareza começava
pelo reconhecimento de que raros são aqueles que têm a coragem de viver a vida
que desejam. A maioria lamentava ter vivido a vida que os outros esperaram que
eles vivessem. Os moribundos não se perdoavam a si próprios: pela covardia,
pela acomodação ou, pior ainda, pelo adiamento constante daquele dia libertador
em que a ‘verdadeira vida’ começaria.
O trabalho em excesso
vinha em segundo lugar. Entre os doentes, havia uma difusa sensação de traição:
como explicar o infortúnio para quem sempre investira tanto nas virtudes da
responsabilidade, do esforço e da excelência? No fundo, para quem sacrificara
tanto? Onde estava a justiça do ‘acordo’?
Depois das relações com o
eu, surgiam inevitavelmente as relações com os outros. A incapacidade de
expressar os sentimentos exatos -as palavras que não foram ditas, ou mal ditas-
e os amigos que se perderam por estupidez ou negligência.
A concluir a lista, o
arrependimento óbvio, uma espécie de súmula dos arrependimentos anteriores: não
terem sido ‘felizes’, ou mais felizes, por uma questão de (má) conduta e (má)
atitude.
Todos os dias, acordamos
e agimos como o jovem português em Londres. Prontos para representar o papel
que nos foi concedido. Obcecados com a ‘carreira’ e as suas perecíveis glórias.
Pateticamente iludidos de que haverá sempre tempo para os outros. E jamais
pensamos que haverá uma ponte; uma rua; uma doença; um golpe de azar que não
estava na agenda.
Mas há afortunados que
sobrevivem. Ou, pelo menos, que sobrevivem o tempo suficiente para se verem no
espelho pela primeira e última vez.
Diz a sabedoria popular
que é importante aprender com os próprios erros. Talvez. Pessoalmente, prefiro
o célebre adágio de que é mais inteligente aprender com os erros dos outros.
Porque a questão é simples e arrepiante: estaremos a viver a nossa vida como se
fosse uma segunda vida?
Um abraço ao meu
compatriota Francisco. E, se me é permitido o abuso, cumprimentos para a
senhora sua avó."
Texto: João Pereira Coutinho
Imagem: Binho Barreto
(JA, Abr17)