T. morava no mesmo prédio que eu, com a
filha de uns 5 anos e a mulher. O prédio ficava numa cidade do litoral Sul de São Paulo, São Vicente. T.
tinha entre 40 e 50 anos, sempre bem vestido, elegante como um executivo bem sucedido, e a
mulher, muito bonita, aparentava ser bem mais nova do que ele. Eu, na época, tinha
cerca de 15 anos, e o via entrar ou sair do prédio, indo ou voltando do
trabalho, quase todos os dias. Aparentemente não tinha carro – aliás,
naqueles dias, não era comum alguém ter um.
Até aí nada de mais. Entretanto, o
que eu enxergava nele era tristeza; nunca vi ninguém passar esse sentimento com tanta intensidade durante toda a minha vida. Era tão forte que
chegava até a incomodar. Estava no seu jeito de andar, de falar e,
especialmente, no seu olhar. Até hoje,
passadas cinco décadas, ainda me lembro perfeitamente daquele olhar. E, ocasionalmente,
ainda me pergunto: ‘Por que ele era tão
triste?’
Procurei me aprofundar um pouco no
tema, mas não cheguei à nenhuma conclusão definitiva, mesmo porque nunca mais o
vi. Mas hoje tenho convicção de que ele deveria estar sofrendo de uma doença,
mais comum atualmente do que então: ‘Depressão’. Com base nesse ‘diagnóstico’,
desenvolvi várias teorias que poderiam justificar, mas uma predominou mais do
que as outras.
Causa
T. tinha uma família adorável: uma
mulher muito bonita que o amava, e um casal de filhos. O menino tinha 9 anos e
a menina 7. Eles moravam na capital e
tinham uma casa de praia no Guarujá, litoral Sul de São Paulo. Era uma região
nova, onde estavam sendo construídos prédios de luxo, um atrás do outro, que
eram vendidos para os mais abastados da capital, que anteriormente tinham seus
apartamentos de veraneio em Santos.
Numa 6ª feira nada especial, sua
esposa e filhos saíram de casa logo após o almoço, como planejado, e se
dirigiram para o Guarujá, o que não era tão raro. Eles tinham um carro confortável
e seguro, do ano, e ela dirigia muito bem. Quando ele saísse do trabalho, no fim da
tarde, iria para lá também, como sempre, dirigindo o carro da empresa.
No meio da tarde ele foi avisado que
eles haviam sofrido um acidente na chamada curva da morte da via Anchieta,
rodovia que liga a capital paulista ao litoral sul. Era uma curva muito fechada,
quase no fim do percurso, e ela, por qualquer motivo, não conseguiu fazê-la. Bateu
na grade lateral, e o carro caiu numa vala a vários metros abaixo do nível da
estrada. Todos morreram na hora.
Ele ficou transtornado com o evento,
e passados alguns meses, ainda não tinha se recomposto. O fato é que o que
ocorreu foi tão grave que os sentimentos provocados estavam acima de sua capacidade de
reação. Ficou desanimado, perdeu o interesse por tudo, e já não era capaz de
sentir alegria com nada. Deixou o
emprego, evitava sair de casa, se relacionar com as pessoas, não esperava mais nada da vida.
Superação
Superação
Recomendaram que ele marcasse uma entrevista com um psicólogo. Quem sabe ele indicasse algum medicamento
ou tratamento que o ajudasse a sair daquela inércia sem sentido.
E ele foi. Foi consultar um médico
especializado que, depois de ouvir a sua história, considerou normal a reação,
mas que não poderia continuar assim sob pena do transtorno se agravar mais
ainda. Além das visitas semanais que ele deveria fazer para refletir e externar
todos os aspectos da sua tristeza, o médico receitou um neurotransmissor, à
base de serotonina ou noradrenalina, que ele deveria tomar diariamente, para estimular a comunicação entre os
neurônios na área do cérebro responsável pelas emoções – o sistema límbico, e
recomendou que ele procurasse fazer
alguma coisa pela qual tivesse tido algum interesse especial no passado.
E foi o que ele fez. Passou a tomar o
remédio como indicado, fazia semanalmente as seções que pouco a pouco foram exorcizando
suas emoções reprimidas, e se inscreveu num curso de arte, especificamente
voltado para desenho e pintura.
A escolha dessa atividade foi ótima. O exercício da arte é uma forma do artista liberar suas emoções reprimidas; funciona mais ou menos
como uma catarse. O artista se expressando, liberta a tensão provocada pelas
emoções que ele carrega dentro de si, num volume maior do que o normal devido à sua grande sensibilidade.
Ele andava meio insensível, mas para realizar alguma coisa, começou a procurar
dentro de si os sentimentos passados que, embora não fossem perceptíveis,
estavam latentes no seu inconsciente. E começou a liberar suas angústias mal
resolvidas.
Passado algum tempo, foi se reaproximando
dos seus amigos mais chegados do passado. Aproveitou uma oportunidade de
emprego que surgiu – nada como antigamente -, mas era uma forma, como disse o seu
médico, de criar um novo ambiente, novos amigos, interesses, para ajudar no
processo de recuperação.
Conheceu uma moça especial que passou
a gostar dele, que o compreendia e o aceitava como era, o tratava com carinho.
A coisa foi indo de tão bem que reacendeu nele a possibilidade de viver uma
nova relação. Casaram-se, foram morar numa cidade do litoral Sul de São Paulo,
e tiveram um filha.
Foi nessa época que o conheci. Ele
não era definitivamente um cara triste. Ele estava triste, e vivia um processo
de cura. Ainda estava debilitado, mas tinha tudo para dar certo, para se
superar.
Hoje, certamente, ele se recuperou e é
um homem realizado. Teve uma filha e dois filhos, todos adultos e formados. Ele
conseguiu novamente ter sucesso no campo profissional, e tem uma existência tranquila,
desfrutando saudavelmente do carinho da sua família.
"Nossa tristeza é uma energia que liberamos para curar. A tristeza é dolorosa. Tentamos evitá-la. Porém, na verdade, descarregar a tristeza libera a energia envolvida em nossa dor emocional. Contê-la é congelar a dor dentro de nós. Vale o slogan terapêutico: 'Tristeza é um sentimento cicatrizante'." John Bradshaw
(JA, Fev15)