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Intervencionismo ocidental no Oriente Médio




Manifestantes em frente à embaixada dos EUA em Bagdá, no Iraque


Intervir na vida dos outros, mesmo que seja ridiculamente teocrática, é uma decisão que acarreta uma certa sensação de onipotência. Eu venho aí e endireito os tortos, e vocês vão me amar por isso. É assim que pensava (e talvez ainda pense) boa parte dos cristãos, a partir do século 4 de nossa era: minha espada está machucando, mas é tudo por amor, quero apenas ‘salvar’ vocês.

Os comunistas pensavam parecido: os stalinistas massacraram os camponeses, e os cambojanos de Pol Pot massacraram, ao contrário, os habitantes das cidades. Eles e os cristãos se metiam nas vidas dos outros para realizar algum bem ‘superior’.

Vivemos, no Brasil, dias paradoxais: um governo que se pretende liberal, não para de querer intervir na vida concreta da gente (atitude que é o contrário do liberalismo).

Tudo isso em nome de Cristo, que não tem sequer como se revirar no caixão porque, como sabemos, ele ressuscitou faz tempo.

Em 1968, durante a Primavera de Praga, enquanto os soviéticos esmagavam as aspirações libertárias dos tchecoslovacos, apareceu uma escrita famosa: ‘Lênin, acorda, eles enlouqueceram’. Lênin não acordou.

Hoje, aqui, poderíamos tentar um ‘Cristo, volta! Os caras enlouqueceram: te confundem com aquele fanático Paulo de Tarso, que odiava o corpo e o sexo’. Não acho que teríamos mais sorte do que com Lênin.

Talvez Cristo e Lênin tenham mais o que fazer: eles não nos escutam. Mas pode ser que eles se calem por vergonha, por se sentirem culpados pelas boçalidades que são praticadas em nome deles.

Fato engraçado. A coisa mais parecida com um comunista bolchevique, é um cristão integrista - ambos matam e reprimem para impor sua ideologia ao mundo, e ambos pretendem que suas próprias crenças não sejam consideradas ideologias, mas teorias científicas, ou palavras divinas (enquanto ambos denunciam as crenças de suas vítimas como ideologias perniciosas).

Enfim, é difícil intervir na vida dos outros sem ser boçal, ou seja, sem lhes impor nossa maneira de viver e pensar como se fosse a verdade. Ao mesmo tempo, é difícil não intervir - sobretudo quando alguns (ou muitos) gritam ‘socorro’.

Em 1970, em Paris, meu vizinho deixava seu cachorro trancado em casa todos os dias. O bicho latia desesperado. Eu não considerei que fosse um pedido de ajuda suficiente para intervir. O mesmo vizinho, a cada noite, voltava para casa e não saía com o cachorro, mas batia nele porque (ele gritava). Esse ‘porco’ fazia suas necessidades dentro de casa.

No fim, liguei para a sociedade protetora dos animais.

Perguntas. Será que eu deveria esperar para ver se o bicho acabaria um dia mordendo seu dono, sem ajuda externa? Será que o cachorro foi adotado ou  esperou duas semanas numa gaiola e foi, enfim, eutanasiado?

Agora, que tal se o vizinho pertencesse a uma cultura muito diferente da minha e, sei lá, estivesse se preparando para sacrificar e comer o cachorro nas festas do fim de ano? Vai que ele não passeava com seu bicho porque queria que engordasse. Por que eu não reconheceria a legitimidade de seus ‘costumes’?

A simpatia pelos ‘costumes diferentes’ animou, por exemplo, Michel Foucault quando, em 1978, defendeu o regime dos aiatolás iranianos sem a menor consideração por aqueles que seriam vítimas do tal regime.

Ele, homossexual e libertário, conseguiu assim a ingenuidade (ou a estupidez) de defender um regime que perseguiria e massacraria com gosto mulheres e homens, que pretendiam viver segundo seus desejos, e não segundo a imposição dos sisudos intérpretes da religião oficial.

Resumindo, na minha ‘doutrina’ intervencionista, em tese, eu não invadiria país algum, mesmo que ele fosse ridiculamente teocrático. Que o próprio povo encontre a coragem de morder a mão que o afaga e tortura. Mas eu tampouco resistiria aos gritos dos oprimidos: ou seja, invadiria e obliteraria um país cujo governo e povo se deleitassem em condenar os adúlteros (e sobretudo as adúlteras), à morte por apedrejamento.

Levantar dilemas morais (do tipo ‘você interviria no caso em que..?’) é uma condição prévia para julgar honestamente a política intervencionista (ou não) do Ocidente, especificamente no Oriente Médio.



Multidão carrega caixão gal. iraniano Qassim Suleimani, cdd sagrada Karbala, Iraque



Guerra do Golfo

O MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, tem uma dependência no Queens, o PS1 - poucos turistas, um ótimo café, e boas exposições temáticas.

Três dias antes do assassinato de Qassim Suleimani e Abu Mehdi, em Bagdá, por um drone dos Estados Unidos, visitei uma grande exposição no anexo PS1 do Museu de Arte Moderna de Nova York, no Queens: ‘Theater of Operations: The Gulf Wars 1991-2011’ (teatro de operações, as guerras do Golfo).

Lembremos. Houve, primeiro, a Guerra do Golfo, em 1991: uma coalizão (EUA, Kuait, Reino Unido, França, Egito e Arábia Saudita) liberou o território do Kuait, que tinha sido invadido pelo Iraque, mas sem depor o (espantoso) ditador iraquiano, Saddam Hussein.

A Guerra do Iraque propriamente dita foi em 2003: EUA e Reino Unido invadiram o país e depuseram Saddam Hussein, que foi julgado e executado pelo novo governo iraquiano. A ‘justificativa’ da intervenção foram supostos vínculos de Saddam com os terroristas da Al Qaeda, e a suposta produção, pelo Iraque, de armas de destruição em massa. Para Saddam, os EUA queriam controlar o petróleo do Oriente Médio. O fato é que as justificativas anglo-americanas se baseavam em informações forjadas.

Durante a guerra de 1991, o sociólogo francês Jean Baudrillard escreveu alguns textos, reunidos sob o título ‘La Guerre du Golfe N’a Pas Eu Lieu’, a Guerra do Golfo não aconteceu.

Primeiro, ele constatava que é difícil dar sentido a um evento inacabado. De fato, a tal guerra no Golfo, se é que começou em 1991, não acabou até hoje. A derrota iraquiana em 2003 foi adubo para o Estado Islâmico (com a guerra para destruí-lo), deixou incerto o destino dos curdos e produziu uma luta de facções e Estados (próximos e longínquos, como EUA e Rússia), que está viva hoje.

O título dos textos de Baudrillard (reproduzidos no catálogo da exposição) está confirmado hoje, no embate entre Trump e o Irã, que também aconteceu mais na mídia do que na realidade. O Irã declara que vingou Qassim Suleimani matando 80 soldados americanos - o que importa é que os iranianos acreditem. Trump declara que nenhum soldado americano se feriu. E foi o fim (temporário) da escaramuça.

Na exposição do PS1, muitas obras apenas dizem que as guerras estão erradas, porque as crianças podem morrer. Engraçado, as crianças são as que mais brincam de guerra (na faixa de Gaza, nos anos 1990, lembro-me de ser acolhido por meninos erguendo seu Kalashnikov de madeira, e gritando ‘kill Israeli, kill’).

Em outras obras (não só iraquianas), ouve-se uma queixa nacionalista: ‘Saddam era um bosta, mas era nosso bosta. O que os gringos tinham a ver com isso?’ Se eu caminho pelas ruas de São Paulo e vejo um refugiado qualquer batendo numa velhinha, não deveria reagir porque ele é estrangeiro? Ou porque eu sou estrangeiro?

Agradeço aos gringos (incluindo os brasileiros) pela intervenção na Europa, na Segunda Guerra Mundial.

Agradeço também pela intervenção (atrasada) na Sérvia para proteger os bósnios. E acho espantoso que os ‘estrangeiros’ não tenham intervindo em Ruanda, no norte da Nigéria, no sul do Sudão, nos momentos sanguinários das ditaduras latino-americanas etc.

Outro argumento implícito de muitos artistas era: tudo foi por causa do petróleo. Como diz o Evangelho (Mateus 4:4, Lucas 4:3, 4), não só de pão vive o homem: a razão cínica, que entende tudo em termos de interesses materiais, é ingênua, ela nunca enxerga as motivações menos óbvias - a começar, no caso, pelo enfrentamento (velho, de 1.400 anos) das duas grandes religiões missionárias, o islã e o cristianismo, ambas capazes e desejosas de guerras santas. 

Saí da exposição me perguntando: por que parecemos preferir simplificações que enxergam o mundo em branco e preto? Deveria ser possível dizer, por exemplo, que o Irã é expansionista e terrorista, sem que isso signifique concordar com a política de Trump.

Para onde foi nossa capacidade de fazer distinções?

Acho que a esquerda foi quem começou. Segundo meus pais, era possível e lógico ser antifascista, sem ser comunista.

Essa inteligência sumiu com a geração deles. Quando voltará? Só sei que, para mim, militante de esquerda nos anos 1960, os liberais e os socialdemocratas eram todos ‘fascistas’.

Hoje, as direitas dão o troco: acham que só há um inimigo, o espectro comunista, que ronda pelo mundo, como se estivéssemos na época do manifesto de Marx.








Fonte: Contardo Calligaris, psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta), e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)  |  FSP



(JA, Jan20)



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