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História Resgatada



 
Obelisco do Largo da Memória, 1860 – monumento mais antigo de São Paulo


Quem caminha nos arredores da rua da Glória, na Liberdade (centro de São Paulo), enfeitada com postes que lembram lanternas orientais, não imagina que está pisando sobre o que foi um cemitério para pessoas pobres, negros, indigentes e condenados à forca.



A maioria das pessoas que desce apressadas na estação Anhangabaú de metrô, pela ladeira da Memória, desconhece que ali ficava o mercado onde se leiloavam escravos até o século 19.

O mesmo para quem anda no entorno da Sé, ou do largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da USP. Conforme a cidade se modernizava para se tornar uma das mais importantes do mundo, a história do povo negro em São Paulo foi sendo escondida.


Faculdade de Direito da USP, largo São Francisco


Sem placas, com nomes que foram trocados, a maioria dos eventos e pessoas ligados a essas histórias foram esquecidos. É o caso do chafariz de pedra do largo da Misericórdia, projetado e construído pelo engenheiro negro Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, em 1792. O local era muito usado pela população negra para buscar água. Alguns discutiam ali maneiras de resistir à escravidão, segundo o grupo. No século 19, ele foi transferido para Santa Cecília.

Tem pontos que foram de resistência, onde houve manifestação cultural, onde a população negra morou de fato, antes de ir sendo expulsa do centro, e outros foram pontos de tortura. No período pós-abolição, a ideia era modernizar São Paulo, para isso era importante apagar esse histórico, que não era uma história moderna, positiva.

Na região da Sé, marco-zero da cidade, funcionava uma espécie de complexo penal da São Paulo antiga. Até 1865, o largo Sete de Setembro, na parte de trás da catedral, era conhecido como largo do Pelourinho, uma referência à coluna que ficava no local para castigar escravos. Por ali, também ficavam a cadeia, a forca e o quartel.



Capela dos Aflitos, erguida em 1774


Em julho de 2018, um prediozinho na rua Galvão Bueno acabou demolido indevidamente para a construção de mais um centro comercial na Liberdade, bairro que, desde as primeiras décadas do século XX, recebe imigrantes orientais. Após uma denúncia do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), foram encontradas nove ossadas com mais de 200 anos enterradas a cerca de 1 metro da superfície.

O terreno particular de 400 metros quadrados, com sua obra atualmente embargada, fica ao lado da pequena e deteriorada Capela de Nossa senhora dos Aflitos, bem tombado em 1991 por causa do seu valor histórico. O entorno, protegido pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp), serviu no século XIX como o primeiro cemitério público da capital, destinado a escravos e excluídos, enforcados no Largo da Liberdade, ao lado de um pelourinho.

Entre eles, destaca-se o cabo Chaguinhas, que, segundo a história, ia ser enforcado, mas a corda se rompeu. Ele havia sido condenado por participar de um levante reivindicando salários ao Império. Depois de resistir a duas tentativas fracassadas de execução, Chaguinhas, após passar a noite na capela da Rua dos Aflitos,  acabou sendo morto na força em 1821 e, até hoje, é objeto de pedidos para milagres na capela.


Capela dos Aflitos antes da demolição do prédio amarelo, LD

‘Uma das ossadas foi encontrada com contas de vidro no pescoço, dedicadas a Ogum, de religião de matriz africana’, diz Lúcia Juliani, diretora da ‘A Lasca’, empresa contratada para consultoria arqueológica em agosto de 2018.

Com a descoberta, movimentos sociais reivindicam a criação de um memorial no terreno. ‘Trata-se da memória de um local de tortura de escravizados que não pode ser esquecida’, afirma Tadeu Kaçula, fundador da ‘Nova Frente Negra Brasileira’. Após audiências públicas, a Câmara Municipal de São Paulo discute dois projetos de lei protocolados pelo vereador Reis (PT) para a criação de um ‘Memorial dos Aflitos’, e a desapropriação do terreno particular.

Um grupo universitário pesquisa, percorrendo acervo de arquivos públicos, teses e dissertações de universidades, livros e o site Dicionário de Ruas, da Prefeitura de São Paulo. Sempre esbarram na dificuldade de encontrar documentos oficiais. No caso do Pelourinho, por exemplo, eles encontraram o registro em apenas um mapa que mostrava a cidade de 1800 a 1874.

‘Além da falta de registro, também tem a vontade do governo de apagar essas memórias. O que gente vem tentando fazer também é organizar essas fontes, para que elas estejam consolidadas para o futuro’, diz outro integrante, Pedro Alves, 26, que chegou a cursar história.

Entre os documentos não-oficiais, como os diários de estudantes do largo São Francisco, o grupo encontrou também a história de Maria Punga. Mulher negra e quituteira, proprietária de um café frequentado pelos jovens a poucos metros das arcadas.


Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paiçandu


Raissa, membro do grupo, se juntou a outros dois amigos do mesmo grupo e expandiu o projeto com a ‘Volta Negra’, uma caminhada pelo centro que revisita alguns destes pontos. O passeio gratuito ocorre uma vez por mês, com pessoas que manifestam interesse pela página do grupo no Facebook.

A caminhada, geralmente, termina na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paissandu. O local é conhecido como símbolo de resistência da comunidade negra em São Paulo, com altares onde grande parte dos santos que recebem orações são negros. Construída em 1906, a própria igreja é um símbolo da remoção que aconteceu na virada do século 19 para 20.

A ideia agora é levar o projeto para dentro das escolas de São Paulo, especialmente as da rede pública. ‘É uma oportunidade de conscientizar as pessoas de que houve luta, de que houve tortura, e de que esses lugares foram reconfigurados para apagar essa história e fingir que não foi tão ruim assim’, diz Raissa.

‘São Paulo seria uma cidadezinha afastada do centro de poder, sem as lavouras de café plantadas pelos escravos. Não seria nada perto do que é hoje, assim como o Brasil, sem escravidão, não teria conseguido se desenvolver economicamente. Seria outra história, não consigo nem imaginar’, avalia Raissa.






Fonte: Fernanda Canofre, FSP   |  Rafaela Bonilla, Veja


(JA, Jan20)

  


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