Quem caminha nos arredores da
rua da Glória, na Liberdade (centro de
São Paulo), enfeitada com postes que
lembram lanternas orientais, não imagina que está pisando sobre o que foi um
cemitério para pessoas pobres, negros, indigentes e condenados à forca.
A maioria das pessoas que
desce apressadas na estação Anhangabaú de metrô, pela ladeira da Memória,
desconhece que ali ficava o mercado onde se leiloavam escravos até o século 19.
O mesmo para quem anda no
entorno da Sé, ou do largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da USP. Conforme a
cidade se modernizava para se tornar uma das mais importantes do mundo, a
história do povo negro em São Paulo foi sendo escondida.
Faculdade de Direito da USP, largo São Francisco |
Sem placas, com nomes que
foram trocados, a maioria dos eventos e pessoas ligados a essas histórias foram
esquecidos. É o caso do chafariz de pedra do largo da Misericórdia, projetado e
construído pelo engenheiro negro Joaquim Pinto de Oliveira Tebas, em 1792. O local
era muito usado pela população negra para buscar água. Alguns discutiam ali
maneiras de resistir à escravidão, segundo o grupo. No século 19, ele foi
transferido para Santa Cecília.
Tem pontos que foram de
resistência, onde houve manifestação cultural, onde a população negra morou de
fato, antes de ir sendo expulsa do centro, e outros foram pontos de tortura. No
período pós-abolição, a ideia era modernizar São Paulo, para isso era
importante apagar esse histórico, que não era uma história moderna, positiva.
Na região da Sé, marco-zero
da cidade, funcionava uma espécie de complexo penal da São Paulo antiga. Até 1865, o largo
Sete de Setembro, na parte de trás da catedral, era conhecido como largo do
Pelourinho, uma referência à coluna que ficava no local para castigar escravos.
Por ali, também ficavam a cadeia, a forca e o quartel.
Capela dos Aflitos, erguida em 1774
Em julho de 2018, um
prediozinho na rua Galvão Bueno acabou demolido indevidamente para a construção
de mais um centro comercial na Liberdade, bairro que, desde as primeiras
décadas do século XX, recebe imigrantes orientais. Após uma denúncia do
Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), foram encontradas nove ossadas com mais de 200 anos
enterradas a cerca de 1 metro da superfície.
O terreno particular de 400 metros
quadrados, com sua obra atualmente embargada, fica ao lado da pequena e
deteriorada Capela de Nossa senhora dos Aflitos, bem tombado em 1991 por causa
do seu valor histórico. O entorno, protegido pelo Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp),
serviu no século XIX como o primeiro cemitério público da capital,
destinado a escravos e excluídos, enforcados no Largo da Liberdade, ao lado de
um pelourinho.
Entre eles, destaca-se o cabo
Chaguinhas, que, segundo a história, ia ser enforcado, mas a corda se rompeu.
Ele havia sido condenado por participar de um levante reivindicando salários ao
Império. Depois de resistir a duas tentativas fracassadas de execução,
Chaguinhas, após passar a noite na capela da Rua dos Aflitos, acabou sendo morto na força em 1821 e, até
hoje, é objeto de pedidos para milagres na capela.
Capela dos Aflitos antes da demolição do prédio amarelo, LD |
‘Uma das ossadas foi
encontrada com contas de vidro no pescoço, dedicadas a Ogum, de religião de
matriz africana’, diz Lúcia Juliani, diretora da ‘A Lasca’, empresa contratada
para consultoria arqueológica em agosto de 2018.
Com a descoberta, movimentos
sociais reivindicam a criação de um memorial no terreno. ‘Trata-se da memória
de um local de tortura de escravizados que não pode ser esquecida’, afirma
Tadeu Kaçula, fundador da ‘Nova Frente Negra Brasileira’. Após audiências
públicas, a Câmara Municipal de São Paulo discute dois projetos de lei
protocolados pelo vereador Reis (PT) para a criação de um ‘Memorial dos Aflitos’, e a
desapropriação do terreno particular.
Um grupo universitário
pesquisa, percorrendo acervo de arquivos públicos, teses e dissertações de
universidades, livros e o site Dicionário de Ruas, da Prefeitura de São Paulo.
Sempre esbarram na dificuldade de encontrar documentos oficiais. No caso do
Pelourinho, por exemplo, eles encontraram o registro em apenas um mapa que
mostrava a cidade de 1800 a 1874.
‘Além da falta de registro,
também tem a vontade do governo de apagar essas memórias. O que gente vem
tentando fazer também é organizar essas fontes, para que elas estejam
consolidadas para o futuro’, diz outro integrante, Pedro Alves, 26, que chegou a
cursar história.
Entre os documentos
não-oficiais, como os diários de estudantes do largo São Francisco, o grupo encontrou
também a história de Maria Punga. Mulher negra e quituteira, proprietária de um
café frequentado pelos jovens a poucos metros das arcadas.
Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do Paiçandu |
Raissa, membro do grupo, se
juntou a outros dois amigos do mesmo grupo e expandiu o projeto com a ‘Volta
Negra’, uma caminhada pelo centro que revisita alguns destes pontos. O passeio
gratuito ocorre uma vez por mês, com pessoas que manifestam interesse pela
página do grupo no Facebook.
A caminhada, geralmente,
termina na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no largo do
Paissandu. O local é conhecido como símbolo de resistência da comunidade negra
em São Paulo, com altares onde grande parte dos santos que recebem orações são
negros. Construída em 1906, a própria igreja é um símbolo da remoção que
aconteceu na virada do século 19 para 20.
A ideia agora é levar o
projeto para dentro das escolas de São Paulo, especialmente as da rede pública.
‘É uma oportunidade de conscientizar as pessoas de que houve luta, de que houve
tortura, e de que esses lugares foram reconfigurados para apagar essa história
e fingir que não foi tão ruim assim’, diz Raissa.
‘São Paulo seria uma
cidadezinha afastada do centro de poder, sem as lavouras de café plantadas
pelos escravos. Não seria nada perto do que é hoje, assim como o Brasil, sem
escravidão, não teria conseguido se desenvolver economicamente. Seria outra
história, não consigo nem imaginar’, avalia Raissa.
Fonte: Fernanda Canofre,
FSP |
Rafaela Bonilla, Veja
(JA, Jan20)