Sucessão papal
Papa vem do italiano papa,
que significa papai. Pedro, de acordo com as Escrituras, designou seus
sucessores, que seriam Lino, Anacleto e Clemente. ‘A ideia é que o papa é um
pai espiritual da família católica que, em certo sentido, inclui todo o bilhão
de membros da Igreja Católica Romana no mundo inteiro’, explica o jornalista
John L. Allen Jr. no livro 'Conclave', que aborda como ocorreu a escolha dos
papas ao longo da História.
Até o século 11, a Igreja
escolhia seus líderes das mais diversas maneiras, inclusive por indicações e
votações. ‘Nos primeiros séculos do cristianismo, a eleição era realizada de
forma mais aberta, com participação do clero local e, em alguns casos, até dos
fiéis da comunidade romana’, explica o filósofo Hugo Brandão, doutor em
Ciências da Religião, e professor de filosofia no Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
‘No entanto, conforme a
Igreja cresceu e sua estrutura se tornou mais complexa, a necessidade de
garantir estabilidade, e evitar interferências externas, levou à centralização
do processo’, complementa o especialista no tema.
Pela tradição, o papa também
é o bispo de Roma, onde Pedro fincou as bases do catolicismo. ‘Em termos
gerais, os bispos em Roma, durante muitos séculos, foram escolhidos como todos
os outros bispos, pelo clero e pelo povo da diocese’, conta Allen Jr. Apesar do
espírito democrático, o sistema desencadeava lutas políticas, e paralisava as
atividades eclesiásticas.
‘Às vezes, as discussões
sobre a sucessão papal transbordavam em violência pelas ruas. Ricas famílias
nobres de Roma exerciam forte influência, assim como os imperadores bizantinos’,
escreve o jornalista.
A influência e o poder da
Igreja também mobilizavam famílias e grupos de nobres, que transbordavam a
questão religiosa, e transformavam a sucessão em uma disputa política pura e
simples.
A manipulação era tão grande
que um aristocrata italiano, Sergio di Caere, chegou a ser eleito duas vezes,
no século 10. Na Idade Média, papas eleitos eram assassinados, e
não era raro o cargo passar de pai para filho, conforme a importância do clã
dominante no clero.
A situação só começou a ter
alguma ordem a partir de 1059. Naquele ano, o papa Nicolau II emitiu a bula
Nomine Domini, que reduzia poder dos aristocratas, e estabelecia que apenas
integrantes do clero participariam das eleições papais, inclusive no processo
de votação.
A Nomine Domini foi sendo
aperfeiçoada até que, em 1179, Alexandre III estabeleceu que a eleição papal era
uma prerrogativa exclusiva dos cardeais. As regras também estabeleciam que o
eleito necessitava de dois terços dos votos obtidos no Colégio de Cardeais.
Mesmo assim, era difícil o
consenso em torno da escolha do novo líder católico, após a morte do titular.
As eleições podiam durar meses, e até anos, sem que os cardeais chegassem a um
acordo.
Em 1271, cristãos
impacientes com a demora de mais de três anos para a escolha do sucessor de
Clemente IV, ocorrida em 1268, trancaram os cardeais dentro do Palácio de Viterbo,
próximo a Roma e que, durante muito tempo, serviu como residência dos papas.
Os religiosos eram
alimentados apenas com pão, água, e um pouco de vinho, até que decidissem quem
seria o futuro papa. Como nem assim chegavam a um acordo, o teto do palácio foi
retirado parcialmente, deixando todos à mercê das intempéries do clima.
Do confinamento à força
ocorrido no ‘Conclave de Viterbo’ surgiu a palavra ‘conclave’, que deriva do
latim ‘com chave’, dando origem ao nome da cerimônia. O termo foi usado pela
primeira vez por Gregório X, eleito em Viterbo, que, em 1274,
estabeleceu oficialmente as regras para os atuais conclaves
Ciente da demora ocorrida
durante a sua própria escolha, o objetivo de Gregório X era evitar
futuros conclaves excessivamente longos, e que não resultassem em acordo,
colocando em risco o poder e a unidade católica. Foram estabelecidos critérios
rígidos, como a aclamação, quando houvesse unanimidade, e número máximo de dias
de conclave, e escrutínios (votações), para a eleição.
Gregório também pretendia
tornar a escolha da liderança uma questão exclusiva dos clérigos. As
interferências externas, porém, não cessaram, em especial quando o poder ainda
não estava completamente centralizado em Roma.
‘Durante o período em que os
papas viveram em Avinhão, na França, entre 1309 e 1377, tiveram forte influência dos reis franceses’,
explica o historiador Ivan Esperança da Rocha, doutor em História Social, e
professor no departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Segundo ele, durante o Grande
Cisma do Ocidente (1378-1417) houve três papas diferentes, cada um apoiado por
diferentes potências europeias.
‘No período do Renascimento, importantes famílias influenciaram a eleição dos papas. Esta influência ocorreu até o século 19, período em que imperadores tinham direito de veto nos conclaves papais. Muitas vezes isso ocorria de forma explícita, mas também velada, criando uma aura de suspense em cada eleição papal’.
Papa
interino
Durante o período de vacância
do cargo por conta da morte ou renúncia do papa, emerge a figura do camerlengo,
uma espécie de ‘papa interino’ responsável pela administração da Igreja até a
escolha do novo titular.
O camerlengo é um cardeal
auxiliar, escolhido pelo papa durante a sua gestão, e com grande conhecimento
relativo aos assuntos pertinentes da função, desde as finanças do Vaticano até
nomeações em cargos espalhados pelas dioceses do todo o mundo.
Também cabe a ele conduzir
todo o funeral do papa morto, e o processo de eleição do sucessor, coordenado
pelo decano do Colégio de Cardeais. A função do camerlengo ganhou destaque
recentemente no filme Conclave. Com direção de Edward Berger, o longa foi
vencedor do Oscar 2025 na categoria melhor roteiro adaptado. E também, após
a morte do papa Francisco, aos 88 anos, na última segunda-feira, 21.
A bula de Gregório X sofreu algumas
adaptações posteriores, mas sem perder as diretrizes básicas no sentido de
tornar a eleição o mais curta e eficiente possível. É importante frisar que
alguns conclaves, ao contrário da tradição secular, foram muito curtos e
objetivos. É o caso da eleição de Pio XII, em 1939, ocorrida em apenas dois dias e três votações, sendo
considerada a mais rápida do século 20.
A rara unidade entre os
cardeais para a escolha de Pio XII é explicada pelo contexto da Segunda Guerra Mundial,
em que o Vaticano buscava alguém com forte talento diplomático para enfrentar
com rigor, mas ao mesmo tempo com muita diplomacia, os anos duros que seriam
enfrentados pela Europa e pelo mundo.
Na década de 1970, o
pontífice Paulo VI definiu em 120 o número máximo de cardeais eleitores, e a idade
máxima de 80 anos a cada votante. Em 1996, João Paulo
II confirmou todas as regras firmadas por seus antecessores, por meio da bula ‘Universi
Dominici Regis’, que acrescentou uma alteração importante: a escolha do novo
papa será apenas por meio dos escrutínios, e não mais por outros métodos, como,
por exemplo, a aclamação.
O texto de João Paulo II, que é seguido até os dias atuais, também estabeleceu a Capela Sistina, no coração do Vaticano, como local oficial e único do conclave, seguindo uma tradição que vem do século 19.
No passado, as eleições
papais ocorriam em diversos lugares, inclusive fora de Roma, como no caso de
Viterbo. O último escrutínio fora do Vaticano havia sido em 1800, quando os
cardeais se reuniram em Veneza para eleger Pio VI, que morreu prisioneiro de
Napoleão Bonaparte.
Movidos pela fé
Desde então, os famosos
afrescos de Michelangelo, que adornam a capela que homenageia o papa Sisto IV (1471-1484)
servem como fonte de inspiração aos cardeais, que devem ser movidos
exclusivamente pela fé, e escolher o ocupante do trono de Pedro guiados apenas
pelos desígnios do Espírito Santo.
‘Para a fé católica, o papa é
mais do que um líder político-religioso. Trata-se do representante terreno do
próprio Cristo, tendo a missão de guiar o Povo de Deus no caminho à santidade’,
explica o filósofo Gabriel de Vitto, professor de antropologia da Faculdade
Bela Vista, de São Paulo.
‘Nesse sentido, ele é a
figura mais importante da Igreja terrena, e tudo que se relaciona a ele é de
suma importância’, completa.
O conclave é um processo que
mistura os consagrados rituais católicos com os ritos de uma eleição comum.
Conforme os mandamentos deixados pelo sumo pontífice João Paulo II, na bula’
Universi Dominici Regis’, o conclave deve ocorrer entre 15 e 20 dias após as
exéquias do atual ocupante do cargo, seguindo uma tradição secular.
No passado, em que os
convocados para a eleição precisavam fazer longas viagens de navio, ou mesmo de
carruagens, esse período era necessário para que não perdessem a votação.
Mesmo assim, não era raro que
religiosos de outros continentes chegassem a Roma já com a eleição concluída.
Hoje em dia, graças aos modernos meios de transporte em todo o mundo, isso não
ocorre mais, e o período de carência geralmente é dedicado a conversas entre os
clérigos, ou mesmo para recompor energias, já que maior parte deles é idosa.
Em tese, todos os cardeais
aptos a votar também podem ser votados. É vetado apenas votar em si. Uma das
regras básicas, desde os tempos medievais, é o isolamento dos cardeais durante
o conclave, para que não sofram interferências do mundo externo ao registrar o
seu voto, que é secreto, por escrito em cédulas especiais, depositadas em
recipientes que servem como urna. Durante os dias do escrutínio, todos ficam
fechados na Capela Sistina, deixando o local apenas para dormir, e durante as
refeições.
No primeiro dia ocorre uma
votação. Caso ninguém consiga os dois terços dos votos, novos escrutínios são
realizados nos dias seguintes, um de manhã e outro à tarde, até haver um
vencedor. Caso não haja resultado em três dias, o quarto é dedicado apenas às
orações e descanso. Caso esse ciclo de quatro dias se repita por mais sete
vezes, é realizado um segundo turno entre os dois mais votados.
Nesse ponto, como em qualquer outra eleição, é impossível separar a fé da política. As longas votações conduzidas pelos escrutinadores no Vaticano revelam a existência de diferentes correntes políticas e ideológicas que disputam a direção que deverá ser seguida pela Igreja Católica nos anos seguintes. Existem, por exemplo, cardeais que representam alas mais conservadoras, que defendem a manutenção rigorosa da tradição e da doutrina.
Do lado de fora da Capela Sistina, na Praça de São Pedro, no Vaticano, uma multidão de fiéis e curiosos acompanha todo o processo em um misto de apreensão, torcida e fé. As expectativas são guiadas pelos sinais de fumaça que sobem ao céu a partir do telhado da Capela Sistina e indicam se o resultado é negativo — se a fumaça for preta — ou positivo, que é quando sobe a fumaça branca.
Não se sabe ao certo quando
começou a tradição da fumaça, que é resultante da queima das cédulas de votação
dos cardeais. No passado, a fumaça branca era obtida pela queima dos votos com
palha molhada. A preta era obtida com queima de breu. Atualmente, as cores
branca ou negra são obtidas com a queima do papel, e com a ajuda de produtos
químicos para a coloração desejada.
Fumaça branca
Ao final da votação com resultado positivo, o escolhido com maior número de votos responde a duas perguntas do decano do Colégio de Cardeais, em meio a uma série de rituais: primeiro, se aceita a missão ao qual foi eleito e, segundo, qual nome pretende adotar.
‘Ele achava que Mercúrio era
um nome pagão demais para um papa e, assim, adotou João II. Até então,
os pontífices eram simplesmente chamados por seu nome de batismo’, explica
Allen Jr.
Encerradas as formalidades,
começam os cumprimentos e, em seguida, o novo líder da Igreja é levado à Capela
Paulina, onde vestirá pela primeira vez a batina branca.
O novo papa será então conduzido até a janela central da Basílica de São Pedro, para ser apresentado, e oferecer a primeira bênção aos fiéis cristãos que, provavelmente, já terão ouvido a famosa frase proferida pelo cardeal diácono mais antigo e mundialmente conhecida há muitos séculos: ‘habemus papam’.
Fonte: Marcus Lopes |
Aventuras na História
(JA, Mai25)