
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) completa 40 anos com objetivos e perspectivas diversas das que motivaram sua criação, um histórico de conflitos com fazendeiros, ruralistas e governos antagônicos, certa desilusão com o PT e desafios que incluem dificuldade de novos quadros, esvaziamento político, e cerco bolsonarista.
Fundado durante um encontro
nacional realizado de 21 a 24 de janeiro de 1984 em Cascavel (PR), o MST se tornou o movimento brasileiro pela reforma agrária
mais famoso, dentro e fora do país.
Protagonista de invasões de
terras vistas por grupos de esquerda como instrumentos de pressão legítimos e,
por grupos de direita, como violações violentas da propriedade privada,
manteve-se no centro das atenções do embate político nestas últimas décadas.
Após atravessar a gestão Jair
Bolsonaro sob ameaças (o ex-presidente defendia enquadrar as ações do grupo
como terrorismo), teve estremecimento com o governo Lula 3 diante da ocupação
de uma fazenda da Embrapa (Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e
foi pressionado por uma CPI na Câmara dos Deputados.
Embora carregue a fama, o MST é apenas um dos movimentos críticos da concentração fundiária. Diferenciou-se de outros pela capacidade de organização e a capilaridade. Presente em 25 estados, optou por não ter presidente, e toma decisões de maneira colegiada.
Foram eles que, em momentos e
circunstâncias diferentes, tomaram a dianteira nas tratativas com os governos,
que no período se dividiram entre oposição aberta (Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Michel
Temer e Jair Bolsonaro), tímida
aproximação (Itamar Franco), e alinhamento sujeito a turbulências (Lula e Dilma Rousseff).
O ápice das invasões do grupo
ocorreu no fim do primeiro e começo do segundo mandato de FHC (PSDB), em 1998 e 1999, de acordo
com os dados compilados anualmente pelo Centro de Documentação Dom Tomás
Balduino, da CPT (Comissão Pastoral da
Terra).
Foram quase 600, em cada um
daqueles dois anos, além de ações em prédios públicos.
Em maio de 2000, o governo
editou medida provisória que impediu a desapropriação de áreas invadidas, o que
resultou em redução das ações do MST.
Com Lula no poder, a medida
foi descartada, e as ocupações voltaram a crescer, embora em número bem menor
do que no período mais tenso sob FHC —que teve uma fazenda sua em Buritis (MG) invadida
pelo MST em 2002. A média de ações nos dois primeiros mandatos de
Lula, de 2003 a 2010, ficou em cerca de 350 ao ano.
Já sob Dilma (2011-2016) esse
tipo de mobilização caiu para uma média de cerca de 215 ao ano; sob
Temer (2016-2018) recuou para abaixo de 200; sob Bolsonaro (2019-2022) atingiu
seu menor índice, com média de menos de 50 ocupações ao ano (o
período coincidiu, em parte, com a pandemia da Covid-19).
Sob Lula 3, a CPT diz que só
no primeiro semestre de 2023 ocorreram 71 ocupações de terras. Os dados do segundo semestre
ainda não foram divulgados.
Embora alinhado, o PT foi por
várias vezes alvo de críticas do MST, que se desiludiu logo nos primeiros anos de Lula 1 com a
possibilidade de uma mudança radical na realidade fundiária brasileira.
‘O governo do presidente Lula
e da Dilma fez bastante, mas nós precisamos avançar. Precisamos colocar a
reforma agrária no orçamento da União’, resume o deputado federal Marcon (PT-RS),
militante e beneficiário da reforma agrária, morando até hoje no Assentamento
Capela, em Nova Santa Rita (RS).
Na visão do deputado, os
maiores desafios daqui para a frente serão estruturar os assentamentos, e dar
perspectivas às novas gerações.
‘Precisamos achar o que fazer
com essa juventude. É agregar valor na produção, ter acompanhamento técnico,
infraestrutura. Hoje, na metade dos nossos assentamentos no Rio Grande do Sul,
deveria ser feita uma estátua das famílias assentadas, pela forma [precária]
como elas estão vivendo’.
Stedile afirma que a nova
geração não tem a mesma ‘têmpera’ do passado. ‘Já está mais acomodada. Já
consegue entrar na universidade. Então, o jovem sem-terra ou assentado está
mais vagaroso para as atividades militantes’.
O MST surgiu em
meio à mobilização de camponeses na CPT, órgão da ala progressista da Igreja Católica. O ano,
1984,
representava o estertor do regime militar.
O principal método sempre foi a invasão —ou ocupação de terras, como reivindica o movimento, e a CPT. A estratégia é pressionar os governos a assentarem quem mora sob lonas (o MST diz que há hoje cerca de 70 mil famílias ainda acampadas).
Doze anos depois de sua criação, em 17 de abril de 1996, o MST viveu, um de seus capítulos mais dramáticos, quando 19 trabalhadores sem-terra, ligados ao movimento, foram assassinados por policiais militares durante protesto em uma rodovia de Eldorado do Carajás (PA).
O caso teve grande
repercussão nacional e internacional, o que acabou fortalecendo o nome do
movimento.
A senadora Tereza Cristina (PP-MS),
ministra da Agricultura no governo Bolsonaro, e hoje uma das principais líderes
do agronegócio no Congresso, afirma que o MST não soube se modernizar.
‘Há 40 anos, até
tinha sentido o trabalho que eles faziam. Nós tínhamos muita terra improdutiva
no Brasil. Mas o MST ter hoje como o seu mantra, sua missão, invasão de
propriedade está fora de época. Chamar atenção invadindo terra, isso é
inconcebível nos dias de hoje’.
A ex-ministra afirma que o
movimento precisa se reinventar, lutando para que os assentamentos sejam
produtivos, e rechaça as críticas do MST ao agro.
‘Não existe esse agro mais. Eu até queria saber onde está esse agro improdutivo. Pode ter casos isolados, mas latifúndios, isso é uma coisa que ficou também no passado. Eu acho que o MST precisa olhar melhor, e ver que o agro brasileiro é tecnificado, trabalhou e ficou independente do governo. É um setor que hoje sustenta a economia brasileira’.
Com a chegada do PT ao poder, a afinidade ideológica freou de certa forma a oposição barulhenta que dava fama ao MST, além de o Bolsa Família ter esvaziado adesões, e aplacado demandas que inflavam o movimento.
Os números gerais da reforma
agrária mostram que as desapropriações (47
milhões de hectares), assentamento de
famílias (615 mil), e verbas discricionárias para ações no setor (R$ 16 bilhões em valores nominais, sem correção) encontraram seu ápice nos dois primeiros mandatos de
Lula.
Todos esses indicadores
começaram a declinar sob Dilma, e caíram ainda mais, alguns simplesmente sendo
paralisados, sob Temer e Bolsonaro.
Nos
últimos anos, igrejas evangélicas avançaram também sobre os assentamentos. O
bolsonarismo e os ruralistas mantêm o cerco sobre o MST nas redes
sociais e no Congresso. Na gestão Bolsonaro, praticamente a única política para
o setor foi promover uma entrega recorde de títulos de terra a assentados
—vista como forma de esvaziar o movimento.
De
acordo com dados do Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária),
em 2023, o primeiro ano de Lula 3, não houve decretos desapropriatórios editados; 51 mil hectares
foram incorporados ao programa de reforma agrária, contra 34 mil no último
ano de Bolsonaro, e 14 mil novas famílias foram assentadas - o dobro de 2022.
Já
o orçamento discricionário do Incra, usado nas ações finalísticas da reforma
agrária, foi o menor desde pelo menos 2003, R$ 300 milhões.
O sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Sérgio Sauer, estudioso de temas ligados aos movimentos agrários, cita cinco pontos que, em sua visão, exprimem a relevância do MST:
- É um dos movimentos que
materializam a saída de uma situação de restrições políticas, para uma de
organização social e popular, no processo de redemocratização;
- deu visibilidade nacional e internacional à situação de profunda desigualdade social, impunidade e violência no campo;
- agregou, à demanda por terra, bandeiras como direito à educação e condições dignas de trabalho;
- produziu reflexão política e teórica sobre a reforma agrária, e
- incluiu o direito ao trabalho como uma das justificativas para o acesso à terra.
Ele
vê na busca pela agroecologia a principal bandeira do MST no momento.
O arroz orgânico plantado no Rio Grande do Sul é um exemplo. Embora em uma
escala bem pequena em relação ao arroz tradicional, o MST é o maior
produtor do país e da América Latina.
O
professor e sociólogo Zander Navarro, também com ampla atuação acadêmica e
profissional na área, avalia que o MST perdeu a sua razão de ser.
Ele
considera que, sem o movimento, dificilmente teria ocorrido a ampla
distribuição de terras entre a segunda metade dos anos 1990 e 2010 - e também
vê papel do grupo na consciência política por parte das famílias mais pobres do
campo. Mas afirma que a reforma agrária é uma política que, na medida em que é
atingida, se esgota.
‘A necessidade de uma reforma agrária deixou de existir porque a demanda social pelo acesso à terra praticamente se esgotou no Brasil. Então, é claro que, neste século, aos poucos, e cada vez mais visivelmente, o MST perdeu sua razão de existir. Cumpriu o seu papel em grande medida. Temos que aplaudir. Isso foi muito importante, mas em uma bela hora terminou, é isso aí. É algo que no Brasil nenhuma autoridade teve a coragem de dizer’.
Concentração fundiária no Brasil, em 10 pontos
1. Em 1534, Portugal cria as capitanias hereditárias.
2.
Nelas, os donatários e Coroa promoveram as sesmarias, que era o modelo
português de distribuição de terras a beneficiários que se comprometiam a
cultivá-las, mediante o pagamento das devidas taxas.
3.
Essa origem do latifúndio se desdobrou na Lei de Terras (1850), no
Segundo Reinado, norma que acabou oficialmente com as doações, e que determinou
que as terras só poderiam ser obtidas mediante compra.
4.
Isso manteve fechado o acesso a pequenos agricultores, ex-escravizados
e imigrantes.
5.
A Lei de Terras também tornou devolutas (ou seja, pertencentes ao estado)
todas as áreas que carecessem de registro legal, segundo os critérios do
Império.
6.
Seguiu-se a isso ainda um intenso e duradouro processo de grilagem - a
falsificação de títulos de propriedade da terra - que se aproveitou de falhas e
confusão nas regras, compadrios políticos, e manobras cartoriais.
7.
O termo grilagem se dá pelo uso de grilos presos em uma gaveta ou
caixa, o que dá a papéis um aspecto envelhecido.
8.
Depois do surgimento de novas leis, a Constituição de 1988 estabeleceu
que ‘compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma
agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante
prévia e justa indenização, em títulos da dívida agrária’.
9.
O período de maior incorporação de terras ao programa nacional da
reforma agrária ocorreu nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010), com
a destinação de 47 milhões de hectares, segundo os dados do Incra.
10. A concentração fundiária no
Brasil, porém, permanece. O Censo Agropecuário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017, por exemplo, mostrou que propriedades com mais de 2.500 hectares representavam 0,3% do bolo, mas ocupavam um
terço da área total desses estabelecimentos no país.
Fonte: Guilherme Seto, João Gabriel, Caue Fonseca e Ranier Bragon | FSP
(JA,
Jan24)