‘Uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro sagrado’, disse Clarice Lispector num registro tardio colhido pela amiga Olga Borelli. ‘A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno de mim, o que me atrapalha muito, afasta as pessoas, e eu fico sozinha’.
À beira de seu centenário, que se
completa no dia 10 de dezembro, o mito de Clarice
talvez esteja maior do que nunca. As pessoas não se afastaram nada dela.
Pelo contrário. Desde sua morte, se
aprofundou a compreensão sobre uma mulher enclausurada por toda a carreira,
numa fama de hermética e estrangeira. E a repercussão de sua obra se ampliou,
sem nunca se exaurir.
‘Quando escritores morrem, é comum
que caiam num limbo, até de séculos. Clarice não passou por esse limbo. Ela foi
direto ao céu’, afirma Nélida Piñon, amiga que a acompanhou até seus últimos
respiros, em 9 de dezembro de 1977.
‘Quando Clarice morreu,
ela vinha numa rápida ascensão. Mas em vida ela era prestigiada, e não
consagrada’.
O que a escritora quer dizer é que,
por mais que a popularidade de Clarice tenha se alargado a partir dos anos 1960 —com a publicação dos contos de ‘Laços de Família’,
os escritos periódicos em revistas, e a explosão chamada ‘A Paixão Segundo G.H.’— ela ainda se restringia muito aos círculos
literários.
Era impensável, para a escritora, que
suas frases se disseminassem sem freios e que multidões consumissem, vorazes e
apaixonadas, a sua literatura —coisas que leitores de hoje enxergam com
naturalidade.
‘Se eu fosse famosa, teria minha vida
particular invadida e não poderia mais escrever’, continuava Clarice, naquele
relato escrito por Borelli em 1981. ‘O autor que
tenha medo da popularidade, senão será derrotado pelo triunfo’.
‘Uma das razões pelas quais ela
acabou triunfando foi que não escreveu para ficar famosa’, diz Benjamin Moser,
biógrafo da autora. ‘Escrevia porque tinha essa necessidade. Os artistas reais
fazem isso e acabam se impondo’.
Piñon sublinha que foi necessário um ‘aprofundamento
de novas sensibilidades’ do público para que a arte de Clarice se alastrasse. ‘Hermético
é aquilo que não foi entendido no seu tempo’.
O crítico Antônio Candido, na sua
resenha de ‘Perto do Coração Selvagem’, disse que a romancista procurava ‘criar
um mundo partindo das suas próprias emoções’, da sua ‘própria capacidade de
interpretação’.
Quem lembra a passagem é outra
referência absoluta em literatura brasileira, Silviano Santiago —para quem a
prosa inaugural de Clarice exigia um novo leitor.
A academia tinha um certo pé atrás
com a obra clariciana, considerada ultrassentimental numa época que celebrava
os romances que enfrentavam as agruras do Brasil, partindo de uma forte
consciência da nacionalidade —a geração de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico
Veríssimo.
Clarice, por sua vez, ‘não tinha uma
casa para assassinar’. ‘Ela não era uma pessoa de literatura engajada, apesar
de ser politizada’, afirma Santiago. ‘Clarice foi desqualificada por fazer uma
literatura vista como feminina, baseada em emoções, sensações, quase abstrata. Claro,
isso num sentido pejorativo, num país machista’.
Aquilo que colaborava para escantear Clarice foi o que acabou ajudando a consagrar a autora.
Seus livros foram abraçados por
leitoras e editoras feministas —foi publicada, logo depois da morte, pela
francesa Éditions des Femmes— e por uma geração ascendente de jovens que viam em sua
literatura, nas palavras de Piñon, a capacidade de ‘emancipar o espírito e a
sensibilidade’.
Santiago acrescenta dois aspectos que
a alavancaram. Primeiro, sua habilidade na elaboração de máximas, frases fáceis
de destacar, citar e fazer circular —outro ponto desprezado pela
intelectualidade da época, aliás.
E, em segundo lugar, sua
compatibilidade com uma literatura cada vez mais popular sobre o judaísmo, ao
redor do mundo. Clarice, vale lembrar, nasceu com o nome Chaya numa Ucrânia
tomada pelo antissemitismo, e chegou a Maceió ainda bebê.
‘A biografia do Benjamin Moser lida
com ela nesse contexto da diáspora judaica, em que cai como uma luva’, diz o
crítico.
O biógrafo americano, de fato,
contribuiu para uma multiplicação tremenda do número de leitores de Clarice
—por causa de seu livro, publicado em inglês há 11 anos, ela foi a primeira autora brasileira a estampar capa do New York
Times. Mas Moser insiste que os melhores leitores dela ainda são os escritores.
‘A dificuldade de escrever é uma
coisa diabólica, horrível, e quem lê Clarice vê como ela faz isso de forma
inspiradora. Mas também desesperadora’, afirma.
‘Nós só temos as palavras para nos
exprimirmos, mas quem escreve sabe que elas não são suficientes para revelar
quem somos. É um fracasso anunciado’, diz Moser, ecoando uma das preocupações
mais clássicas da obra clariciana. ‘Tem sempre uma vontade de ir além da
linguagem, e alcançar alguma verdade mais verdadeira. Aquilo que Clarice chamou
de Deus’.
Uma das capturadas nessa projeção
internacional mais recente foi Jhumpa Lahiri, escritora britânica de
ascendência indiana que venceu o Pulitzer por ‘Intérprete de Males’. Sua reação
inicial à ‘Paixão Segundo G.H.’, diz ela, foi um impulso de parar de escrever.
‘Pensei, tudo já está dito aqui’,
afirma ela ao repórter. ‘É uma autora tão extrema. Para quem tem a
sensibilidade de se conectar à sua linguagem, é um presente tão imenso, uma
experiência tão inovadora, tão perturbadora, tão verdadeira’.
Quem também sofreu o impacto da mesma
leitura foi Elena Ferrante, que incluiu ‘G.H.’ em sua lista de livros favoritos
de autoria feminina. Lahiri acha essa afinidade natural e diz ter percebido, ao
ler Clarice, que ali estava a fonte de muito do que a italiana tematiza.
‘Se você olha para os aspectos do
trabalho de Ferrante que mais mexeram com as pessoas, aquilo de se ver às
margens, a exploração da vida interior das mulheres, você encontra tudo aquilo,
e mais, na obra de Clarice’, afirma a britânica, também professora de escrita
criativa da Universidade Princeton, onde deu um depoimento mês passado sobre
seu apreço por ‘G.H.’.
A massa de leitores que se atraíram
pelo ‘apelo fenomenal’ de Ferrante ao redor do mundo, diz ela, faria muito bem
em voltar seus olhos à brasileira.
‘Mas que inferno, e eu lá desejo
entrar em alguma literatura do mundo?’, arrematava Clarice, naquele mesmo
depoimento à amiga sobre a fama.
‘O futuro já é passado,
não me interessa mais. Ou estão pensando que eu escrevo para criar alguma
notoriedade?’
Intenções à parte, a literatura do mundo nunca mais foi a mesma depois de Clarice Lispector.
Fonte: Walter Porto | FSP
(JA, Dez20)