O autor de
'Sapiens', Yuval Noah Harari, diz que existem dois caminhos no pós-pandemia: um fortalecimento
ainda maior do nacionalismo ou a cooperação global
Nesses dias de
excepcionalidade do coronavírus, o israelense Yuval Noah Harari comemora um
feito notável: ele acaba de ultrapassar os 25 milhões de livros vendidos. Com uma rara combinação
de rigor factual e linguagem inspiradora, seu mérito é provar que é possível
atingir as massas com pensamento elevado, objetivo alcançado pelos seus
best-sellers Sapiens (L&PM) e Homo Deus (Companhia
das Letras).
Em meio à pandemia, o
historiador poderia deitar sobre os louros enquanto curte o isolamento em uma
casa nas cercanias de Tel-Aviv junto do marido. Mas o intelectual de 44 anos não se
aquieta: usa o tempo recluso para escrever e difundir seus pensamentos. ‘Estou
trabalhando duro, na tentativa de ajudar as pessoas a vencer esse período
sofrido’, disse. Na entrevista a seguir, Harari analisa como a crise atual
afetará o futuro, faz uma defesa da cooperação global e expõe os prós e os
contras dos sistemas de monitoramento que hoje ajudam a identificar os
infectados.
Como será o
mundo após a pandemia?
Será um mundo diferente. Se
melhor ou pior, isso dependerá de nossas decisões agora. O mais importante é
perceber que não há apenas um único resultado determinístico para esta crise.
Temos escolhas a fazer. E, se fizermos as escolhas certas, podemos não apenas
superar o vírus, mas emergir da pandemia tendo construído um mundo melhor.
Quais
escolhas seriam certas ou erradas?
Podemos escolher o caminho de
mergulhar ainda mais no populismo nacionalista de muitos líderes que estão no
poder hoje, com os países lutando só pelos próprios interesses e contra os
demais — todos sairiam perdendo. Ou podemos reagir com solidariedade global,
num cenário em que os países ajudam uns aos outros na economia, no desenvolvimento
de vacinas, e na produção de equipamentos médicos.
Nosso futuro depende de
decisões políticas urgentes. O que acontecerá com a crise do mercado de
trabalho? Se, ao final do processo, ela vai enfraquecer ou fortalecer o
trabalho organizado, depende de nossas escolhas e de decisões políticas que não
são determinadas pelo vírus.
O quadro
atual sinaliza que o mundo está no rumo correto?
Até agora, a reação está
longe do ideal. Não há nenhuma liderança global capaz de coordenar os esforços
para deter a epidemia em si, nem atuar na arena econômica. Os Estados Unidos
foram o líder tradicional do mundo nas últimas décadas, e assumiram a dianteira
na crise financeira de 2008 e no drama do ebola na África, em 2014.
Agora, o país está fazendo o
oposto: minando todo esforço de cooperação. O presidente Donald Trump briga com
a Organização Mundial da Saúde (OMS) na hora em que mais precisamos dessa organização. E
não existe um plano econômico global para lidarmos com a crise. Isso é
extremamente preocupante. Alguns países têm recursos para enfrentar a
devastação da pandemia, mas a maioria não se levantará sem cooperação dos
ricos
.
O embate
entre Trump e a OMS é um sinal do esgotamento das organizações multilaterais do
pós-guerra?
A situação atual enfatiza
quão importante é ter esse tipo de cooperação. A OMS comete erros, como todas as
organizações. Mas, sem ela, como seria possível compartilhar informações
sanitárias além-fronteiras? Como saber se o vírus pode estar sofrendo mutações
ou se haverá uma segunda onda?
Se alguns países não gostam
do trabalho da OMS ou de suas decisões políticas, tudo bem, vamos tentar
construir outra organização. Mas precisamos de uma instância para centralizar o
combate a uma pandemia. Sem informação compartilhada, nenhum esforço local pode
ter sucesso.
'Estamos em situação mais privilegiada
que nunca na história para enfrentar uma pandemia. Não vivemos na Idade Média,
e todos devem saber que o coronavírus não é a peste negra'
A baixa
cooperação global nesta crise o deixa pessimista?
Ela deixa um vazio alarmante,
mas, por contraponto, traz uma lição: vamos perceber, por bem ou por mal,
quanto é importante a cooperação global. Ainda não é tarde para mudar de rumo e
reagir. Desse modo, será mais fácil superar a crise atual e construiremos um
mundo em condições de lidar melhor com emergências futuras.
Contra as
recomendações sanitárias, Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro atacam ferozmente
o isolamento social. Como esses líderes serão julgados pela história?
É difícil saber como as
pessoas verão a crise atual à distância do tempo. Agora mesmo, no calor da
hora, é complicado opinar sobre as diferentes abordagens contra a pandemia.
Mas
Trump e Bolsonaro estão fazendo um jogo duplo. Seus países passarão por um
período econômico duro, com as pessoas perdendo empregos e negócios. Ao se
portarem como profetas do caos na economia, eles querem transferir a
responsabilidade pelas dificuldades para outras pessoas, como prefeitos e
governadores. E também não assumem suas responsabilidades na luta contra o
vírus.
Em que
medida os avanços tecnológicos do presente marcarão a luta contra a pandemia?
Em matéria de tecnologia
médica, estamos em uma situação mais privilegiada que nunca na história para
enfrentar uma pandemia.
Felizmente, não vivemos na
Idade Média, e todos devem saber que o coronavírus não é a peste negra. Na
Idade Média, ninguém entendia o que estava acontecendo quando vinha uma
epidemia. Aliás, até coisa de um século atrás, durante a gripe espanhola, os
médicos não entendiam o que causava a doença, muito menos como ela podia ser
vencida.
Hoje temos conhecimento
científico e a tecnologia para colocá-lo em prática. Foram necessárias apenas
duas semanas para identificar o vírus causador da Covid-19 e sequenciar seu
genoma. Não há dúvida da nossa capacidade de entender e controlar uma pandemia.
Governos de
vários países estão recorrendo a ferramentas de vigilância no combate à doença.
Qual a importância delas?
As tecnologias de vigilância
desenvolvidas nos últimos anos serão extremamente úteis para permitir que as
pessoas possam retornar ao trabalho ou à escola com segurança. Se você é capaz
de monitorar pessoas e avisá-las da proximidade de infectados, a volta a uma
situação normal pode ser acelerada. Mas tudo tem de ser feito com absoluta
ponderação.
Por quê?
Precisamos ser muito
cuidadosos com a vigilância. Se instituirmos o sistema e as leis erradas, a
tecnologia nos ajudará a combater a epidemia, mas também poderá destruir a
democracia e nossas liberdades. Já estamos vendo em vários países a tentativa
de usar a situação para estabelecer regimes autoritários.
Como se pode
utilizar a tecnologia de maneira responsável?
Antes de tudo, a vigilância
deve ser a mais limitada possível. Seu controle não deve ficar nas mãos da
polícia, dos serviços de segurança ou do Exército.
Precisamos monitorar as
pessoas para descobrir quem está se arriscando ou pondo os outros em risco, mas
isso deve ser trabalho de uma agência de saúde independente, que seja obrigada
a não compartilhar os dados.
Mesmo assim,
as pessoas não estarão sujeitas a abusos por parte do governo?
É impossível afastar
totalmente o risco de abusos, mas há uma boa solução para que a vigilância
ajude a saúde sem comprometer a democracia. Se dermos ao Estado o poder de
monitorar as pessoas por meio da tecnologia, devemos nos valer dela para
aumentar a vigilância sobre o governo.
Na crise atual, nenhum
governante expõe claramente como está administrando o dinheiro dos pacotes de
auxílio. É possível usar a tecnologia para vigiar se esses recursos não serão
destinados para o resgate de corporações corruptas ou para os amigos do poder,
em vez das pequenas empresas e indivíduos em dificuldade.
Não há o
perigo de que o caos da pandemia leve o mundo a uma nova era de regimes
totalitários, como aconteceu na Europa após a I Guerra e a gripe espanhola?
Esse é um risco que devemos
sem dúvida levar a sério. Crises como a do coronavírus podem despertar os
demônios interiores da humanidade. Se conduzida com egoísmo, e falta de visão
do futuro, esta crise só levará a mais ódio, ganância e ignorância, e
estimulará o surgimento de todos os tipos de ditadores.
Há quem
defenda a ideia de que ditaduras como a China têm maior facilidade em combater
o vírus. Faz sentido?
Esse é um erro completo. Não
é verdade que as ditaduras sejam melhores do que as democracias em lidar com
crises assim. Geralmente é o contrário. É verdade que as ditaduras têm a
vantagem de tomar decisões mais rapidamente, porque o ditador não precisa
consultar ninguém.
O problema é que ele quase
nunca admite o erro. Todos os que questionam são traidores e o ditador de
plantão exige mais poder a fim de vencer o inimigo. A democracia dispõe de
freios e contrapesos que permitem corrigir os rumos em caso de uma decisão
errada.
Países livres como Coreia do
Sul, Taiwan, Nova Zelândia e Alemanha vêm combatendo a crise de modo mais
transparente e eficaz que a China.
'A crise atual pode despertar os
demônios da humanidade. Se conduzida com egoísmo, só levará a ódio, ganância e
ignorância, e estimulará o surgimento de ditadores'
Qual a
contribuição de cada indivíduo para atravessar tempos de pandemia?
Depende de quem você é, de
qual é a sua condição. Muitas pessoas desempenham papéis importantíssimos que
um dia terão seu devido reconhecimento nesta crise. Não falo apenas de
enfermeiras e médicos, mas das pessoas que vendem comida no supermercado, que
limpam a rua ou tiram o lixo.
Elas são essenciais. Mesmo alguém que não vá
trabalhar na rua, tem a função indispensável de manter a si mesmo e zelar pelo
equilíbrio de sua família.
Cidadãos ao
redor do mundo enfrentam problemas psicológicos e ansiedade diante das notícias
ruins e da quarentena. Como manter a fé na humanidade nesta hora?
Renovar a confiança na
ciência pode nos ajudar a manter o equilíbrio. O vírus é uma grave ameaça, mas
podemos derrotá-lo. Será difícil, muitas pessoas morrerão, mas temer que a
doença saia do nosso controle, é irracional. E, de novo, não podemos permitir
que a irracionalidade desperte os demônios da humanidade.
Se começarmos a culpar
estrangeiros ou minorias pela doença ou abraçarmos teorias da conspiração, será
mais difícil superar o problema.
Se, por outro lado,
dominarmos nossos demônios, o mundo sairá desta crise muito mais dinâmico.
Talvez ela seja o empurrão que faltava para nos levar a um futuro plenamente
digital, por exemplo.
Como está
lidando pessoalmente com a situação de isolamento?
Eu e meu marido estamos em
quarentena em nossa casa. Não perdemos nossas fontes de sustento, por isso
nossa situação é relativamente boa. Temos amigos e familiares que perderam o
emprego por causa da paralisação geral, e estão contando com ajuda de parentes
e conhecidos. Sabemos quanto somos sortudos.
Fonte: Marcelo Marthe | Veja
Ed. 2688
(JA, Mai20)