O motorista aguarda o momento
seguro para conduzir seu carro e atravessar o cruzamento. Olha para os lados
que atravessará e, estático, aguarda que outros veículos deixem livre o caminho
pela via transversal à sua frente. Enquanto espera, olha de um lado a outro a
vigiar a pista quase livre. Finalmente não avista mais nenhum veículo que
poderá atrapalhar seu planejado movimento. É hora de dirigir, mas, no meio da
travessia, ele é surpreendido por uma grave colisão. Uma motocicleta atinge a
traseira de seu veículo.
Eu tomo a defesa do
motorista: ele não viu a moto se aproximar. É difícil perceber objetos que de
repente somem ou aparecem em uma cena.
Nossa condição humana está
casada com uma inabilidade de perceber certas mudanças. Claro que notamos
muitas alterações à nossa volta, especialmente se olharmos para o ponto alvo da
modificação no momento em que ela ocorrerá. Assim, se olharmos fixamente para
uma janela cheia de flores, poderemos assistir à queda de uma delas.
Mas, se desviarmos brevemente nossos olhos da janela, justamente no momento da queda, é possível que nem notemos a sua falta. O fenômeno se chama
cegueira para mudança: nossa incapacidade de visualizar variações do ambiente
entre uma olhada e outra.
No mundo real, mudanças são
geralmente antecedidas por uma série de movimentos. Se esses movimentos superam
um limiar atrativo, vão capturar nossa atenção que focará na alteração
considerada dominante. Por sua vez, modificações que não ultrapassam o limiar
não provocarão divergência da atenção e serão ignoradas.
Quando abrimos nossos olhos,
ficamos com a impressão de termos visão nítida, rica e bem detalhada do mundo
que se estende por todo nosso campo visual. A consciência de nossa percepção
não é limitada, mas nossa atenção e nossa memória de curtíssimo prazo são. Não
somos capazes de memorizar tudo instantaneamente à nossa volta e nem podemos
nos ater a tudo que nos cerca. Nossa introspecção da grandiosidade de nossa
experiência visual confronta com nossas limitações perceptivas práticas e cria
uma vivência rica porém efêmera e sujeita a erros de interpretações. Dimensiona
um gradiente entre o que é real e o que se presume, algo que favorece os
acidentes de trânsito.
O mundo aqui fora é um caos
repleto de acontecimentos, e nossos cérebros têm que coletar e reter alguns
deles para que possamos compreendê-lo e, assim, agirmos em busca da nossa
sobrevivência. Mas essas informações são salpicadas, incompletas e mutáveis.
Traçar uma linha que contextualize todos esses dados não é simples.
Eventualmente, esse jogo mental de ligar pontinhos cria uma armadilha para nós
mesmos, pois por vezes um ponto que deveria ser descartado é inserido em uma
lógica apenas por ser chamativo. E outro que, ao contrário, deveria ser
considerado, mas é menosprezado, pois à primeira vista não atendeu a um
pressuposto.
Essas interpretações podem
provocar outras tragédias além de acidentes de carro.
Fonte: Luciano Melo, médico
neurologista
(JA, Abr19)