Hitler usou socialismo para atrair
massas ao nazismo, mas meta era destruir marxismo
Partido Nazista foi associado à esquerda
por Bolsonaro por conter o termo ‘socialista’ no nome
O erro do presidente Jair
Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo em classificar o nazismo como um
movimento de esquerda tem raízes históricas. O próprio Adolf Hitler, em seu
manifesto com toques autobiográficos ‘Minha Luta’, faz troça com eventuais
confusões entre os nacional-socialistas e os comunistas.
A ambiguidade foi alimentada
não só pelo intenso uso do vermelho na identidade visual do NSDAP (Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), mas também por um vocabulário
próximo ao da militância comunista, com críticas à burguesia e ao capitalismo,
além de admitir a existência de uma luta de classes.
Cartaz pedindo voto aos nazis, fins década de 1920 - ‘Basta de Corrupção’ |
‘Até a cor vermelha dos
nossos pôsteres atraiu eles [militantes comunistas] para nossos salões de
encontro. A burguesia comum estava bastante chocada por nós, também, termos
recorrido ao vermelho dos bolcheviques, e isso era considerado um assunto muito
ambíguo’, escreve o ditador alemão (1889-1945) no livro publicado em 1925.
Continua Hitler: ‘Os
espíritos nacionais alemães discretamente continuaram a mencionar a suspeita de
que nós [nazistas] éramos basicamente uma variante do marxismo, talvez apenas
marxistas disfarçados ou socialistas melhores’.
‘Escolhemos a cor vermelha
dos nossos pôsteres após cuidadosa consideração, dessa forma provocando a
esquerda, causando indignação e tentando-os a vir a nossos encontros’, afirma o
líder nazista no livro, que vendeu milhões de cópias depois de sua ascensão ao
poder, em 1933.
‘Socialismo era um conceito
de esquerda naquela época, mas ao mesmo tempo, estava na moda’, lembra o
historiador Daniel Schönpflug, da Universidade Livre de Berlim. ‘Hitler o usou
para dar ao seu partido a energia de um movimento popular’.
A ideia era conquistar grupos
socialistas, fortes naquela época, para um programa nacionalista, segundo a
pesquisadora Silvia Bittencourt, autora de ‘A Cozinha Venenosa’ (Três
Estrelas), no qual analisa a cobertura dos primeiros anos do movimento nazista
feita pelo jornal Münchener Post, de Munique.
Hitler saúda tropas alemãs |
‘Os jornais de esquerda, como
o Post, até cobravam de Hitler uma postura mais socialista, voltada para os
trabalhadores, lembrando o nome do partido. Mas estava claro que o nome era
mais proforma e que a agremiação estava mais interessada no nacional do que no
socialista’.
Em uma entrevista concedida
em 1923, Hitler foi questionado sobre o uso do termo nacional-socialista. O
líder nazista respondeu com uma argumentação um tanto quanto peculiar.
‘Socialismo é a ciência de
lidar com o bem comum. Comunismo não é socialismo. Marxismo não é socialismo.
Os marxistas roubaram o termo e confundiram seu significado. Eu vou tirar o
socialismo dos socialistas’. Para ele, o ‘socialismo, ao contrário do marxismo,
não repudia a propriedade privada’.
Um episódio é revelador dos
efeitos dessa ambiguidade —e mostra o eleitorado que Hitler ambicionava
conquistar.
Entre os 25 pontos do
programa do Partido Nazista, apresentado em 1920, o de número 17 deixou
inquietos os grandes empresários que ainda relutavam em aderir ao movimento do
orador das cervejarias de Munique.
‘Demandamos uma reforma
agrária adequada aos nossos requerimentos nacionais, a aprovação de uma lei
para a expropriação da terra com propósitos comunais sem compensação’.
Hitler -no canto esquerdo- discursa t. militância nacional-socialista, Nuremberg, 1937 |
Na campanha eleitoral de
1928, Hitler foi obrigado a esclarecer este ponto:
“Devido às interpretações
mentirosas por parte de nossos oponentes sobre o Ponto 17 do programa do NSDAP,
a seguinte explicação se faz necessária: Sendo o NSDAP fundamentalmente baseado
no princípio da propriedade privada, é óbvio que a expressão ‘expropriação sem
compensação’ se refere meramente à criação de possíveis meios legais de
confisco de terras adquiridas ilegalmente, ou não administradas de acordo com o
bem-estar nacional. É, assim sendo, dirigida a empresas de judeus que especulam
com a terra.”
Como aponta o historiador
britânico Ian Kershaw na biografia ‘Hitler’ (Companhia das Letras), o ditador
nazista sabia que a burguesia alemã, por si só, em meio ao caos político-social
em que o país estava mergulhado nos anos 1920, não conseguiria derrotar a
ameaça comunista.
Para tal, na cabeça de
Hitler, era preciso conquistar as massas. Isso implicava em reconhecer suas
preocupações sociais. Mas, caso a plateia julgasse que isso era contrabando
marxista, Hitler estava pronto para tranquilizá-la imediatamente: a legislação
social exigia ‘a promoção do bem-estar do indivíduo numa estrutura que
garantisse a manutenção de uma economia independente’, escreve Kershaw.
Cartaz propaganda nazi contra o bolchevismo judeu |
Apesar de brincar com essa
ambiguidade no decorrer de ‘Minha Luta’, Hitler é claro ao dizer o que pensa
sobre o marxismo: ‘Nos anos 1913 e 1914, eu, pela primeira vez, em vários
círculos que hoje apoiam fielmente o movimento nacional-socialista, expressei a
convicção de que a questão do futuro da nação alemã, era a questão de destruir
o marxismo’.
Destruir, aniquilar, extirpar
são os verbos preferidos por Hitler para descrever qual deveria ser o futuro da
teoria que Karl Marx e Friedrich Engels botaram de pé no século 19.
Convém lembrar que o marxismo
está na raiz dos programas de inúmeros partidos de esquerda e centro-esquerda,
em maior ou menor grau, desde o fim do século 19.
Ao pedir voto na campanha
eleitoral do início de 1933, Hitler afirma:
‘Os partidos do marxismo, e aqueles
que os acompanham, tiveram 14 anos para ver o que poderiam fazer. O resultado é
um monte de ruínas. Agora, povo alemão, deem-nos quatro anos e depois nos
julguem e sentenciem’. Não por acaso, o slogan do NSDAP naquela campanha foi ‘ataque
ao marxismo’.
Em discurso a líderes da
indústria automobilística, o recém-empossado chanceler do Reich é categórico: ‘Jamais
me afastarei da tarefa de erradicar da Alemanha o marxismo e seus efeitos
secundários’.
E a retórica não era nova. Em
um texto datado de 1922, Hitler escreve que ‘uma vitória da ideia marxista
significa o extermínio completo dos oponentes. A bolchevização da Alemanha
significa a aniquilação completa de toda a cultura ocidental cristã’.
Foi a mesma defesa da cultura
ocidental cristã que permitiu uma aliança com partidos conservadores de direita
e centro-direita para a formação do primeiro gabinete de Hitler no governo, em
1933.
Um dos primeiros atos dessa
administração foi banir o KPD (Partido Comunista Alemão). No ano seguinte,
todos os outros partidos, com exceção do NSDAP, foram extintos.
Analisando-se o que Hitler
escreveu e declarou, e considerando o Führer a personificação do Partido
Nazista —de forma que um não pode ser compreendido sem o outro— é impensável
afirmar que o nazismo era de esquerda, pois o objetivo confesso do NSDAP,
durante seus 25 anos de existência, foi a destruição das teorias que
constituíam a raiz programática dos partidos de esquerda e centro-esquerda.
Fonte: Guilherme Magalhães, FSP
| Andries Viljoen, Medium
(JA, Abr19)