Você sabe a origem dos contos de
fadas?
No século 16, os contos de fada não
eram brincadeira de criança. Sexo, violência e fome apimentavam as tramas
inventadas por camponesas nas poucas horas de diversão.
Você já imaginou se o lenhador não
aparecesse ao final da história para salvar Chapeuzinho Vermelho e sua vovozinha?
Agora, pior do que isso: ‘E se a
menina, antes de ser devorada pelo Lobo Mau, ainda fosse induzida por ele a
beber o sangue da avó, além de tirar a roupa e deitar-se nua na cama?’ Você
contaria tal historinha a seu filho? As camponesas da França do século 16
contavam – e os detalhes violentos e libidinosos -desta e de outras histórias
que povoam o imaginário infantil-, não paravam por aí.
Se você nunca ouviu as
versões apimentadas, foi por obra e graça de escritores como o francês Charles
Perrault, os alemães Jacob e Wilhelm Grimm, e o dinamarquês Hans Christian
Andersen que, entre o fim do século 17 e o início do século 19, pesquisaram,
recolheram e adaptaram as histórias contadas por camponesas criadas em
comunidades de forte tradição oral.
‘Chapeuzinho Vermelho’, ‘Cinderela’, ‘Branca
de Neve’, ‘João e Maria’, ‘A Bela Adormecida’, e outros contos de fadas tão
familiares, foram passados de geração para geração por trabalhadoras analfabetas,
que se sentavam à noite em volta de fogueiras para contar histórias. Nestas
reuniões, chamadas de veillées pelos franceses, as mulheres narravam seus casos, enquanto
fiavam e teciam, o que originou expressões como ‘tecer uma trama’ e ‘costurar
uma história’.
Os homens consertavam suas ferramentas ou quebravam nozes. No
universo dos camponeses franceses pré-Revolução, nos séculos 17 e 18, não havia
tempo para descanso. Durante o Antigo Regime, diversão e trabalho se misturavam,
como na história da pobre Gata Borralheira.
Sem papas na língua, as contadoras de histórias caprichavam nos detalhes, digamos, escabrosos. Na versão original, A Bela Adormecida, por exemplo, foi violada por um anão durante o sono. Isso acontecia porque, naqueles tempos, essas não eram exatamente histórias infantis. Naquela época, não havia distinção entre infância, adolescência e idade adulta. Esses contos eram galhofas, que serviam para unir a comunidade.
Tanta inspiração nascia do cotidiano:
a segurança da casa e da aldeia se opunha aos perigos da estrada e da floresta,
como em ‘Chapeuzinho Vermelho’. A crueldade fazia parte do roteiro, pois era
pobreza e morte que se esperava do mundo no século 16. A fome, o maior mal
daquele tempo, protagonizava muitas das narrativas, como em ‘João e Maria’, em
que os pais abandonam as crianças na floresta por não ter como alimentá-las. No
caso da história de João e Maria tem a parte da preocupação dos adultos com a
fome que assolava a todos, e das crianças que temiam ser abandonadas.
No final do século 18, tudo começa a
mudar e os contos começam a ter nuances de contos de fadas com final feliz.
Então, se começa a fazer distinção entre a infância e a vida adulta.
E, é nesse momento da história que
entraram em ação Perrault, os irmãos Grimm e, mais tarde, Andersen. Eles não
foram os primeiros a passar para o papel as histórias dos camponeses, mas foram
os mais bem-sucedidos em sua adaptação, ao gosto da nobreza, e das crianças.
Perrault, por exemplo, incluiu comentários sobre os costumes e a moda das
elites em suas versões, para dar uma cara à nação francesa.
O que o escritor fez em seu ‘Contos
da Mamãe Gansa’, de 1697, de certa forma foi o que os contadores faziam nas
aldeias: adaptou um fio condutor comum a sua realidade, eliminando detalhes
violentos ou de conteúdo sexual – e incluindo a ‘moral da história’. A
adaptação ao gosto do contador, aliás, é uma marca que atravessa os tempos.
Em uma história da China do século 9,
por exemplo, uma moça chamada Yeh-Hsien é ajudada por um peixe mágico, que lhe
dá chinelas de ouro para a festa da aldeia. Na volta para casa, ela perde uma
das chinelas, que vai parar nas mãos do governante. No fim, o chefe local se apaixona
pelos pés pequenos de Yeh-Hsien, em consonância com os costumes chineses de
enfaixar os pés das meninas para que eles não crescessem. As diferenças
culturais estão claras, mas pode-se reconhecer nesse conto as origens de ‘Cinderela’.
Quando uma história é narrada de
forma oral, normalmente é adaptada a realidade do momento. E, quem conta um
conto sempre aumenta um ponto, seja na China do século 9, na França do século
18, ou nos dias de hoje.
Para exemplificar, segue abaixo a
história da Chapeuzinho Vermelho - como
era contada originariamente...e como ficou depois. Se pudesse opinar, diria
para não contar a versão original aos seus filhos.
Chapeuzinho Vermelho
Versão original
Na França do século 18, Chapeuzinho
Vermelho não usava um chapeuzinho vermelho. E o Lobo matava a vovó, enchia uma
jarra com o seu sangue e fatiava sua carne. Quando a menina chegava, ele, já
travestido, mandava que ela se servisse do vinho e da carne. Depois, pedia à
menina para se deitar nua com ele.
A cada peça de roupa que tirava, Chapeuzinho
perguntava o que fazer, e o lobo respondia: ‘Jogue no fogo. Você não vai
precisar mais’.
E ela não perguntava dos olhos, orelhas
ou nariz do algoz. Dizia assim: ‘Ah, vovó, como você é peluda!’, ao que ele
respondia: ‘É para te manter mais aquecida’. Citava ainda seus ombros largos, e
suas unhas compridas, em comentários sensuais, antes de dizer: ‘Ah, vovó! Que
dentes grandes você tem!’.
E a história terminava com o lobo
devorando a garota. Sem caçador para salvá-la, sem final feliz, e sem medo de
mexer com tabus.
Na versão dos irmãos Grimm,
início do século 19
Nesta versão não há banquete canibal,
nem strip-tease ou mortes. Chapeuzinho, incitada pelo Lobo, desvia-se do
caminho para colher flores. Enquanto isso, o lobo devora a vovozinha e veste
suas roupas.
Quando a garota chega, faz as perguntas
clássicas: ‘Por que a senhora tem orelhas tão grandes?’ ‘É para te ouvir melhor’,
responde o Lobo, e assim sucessivamente, passando pelos olhos, o nariz e as
mãos, até a pergunta fatal: ‘Por que a senhora tem essa boca enorme?’ ‘É para
te comer!’, diz o Lobo, devorando-a.
Os Grimm incluíram na trama ainda a
figura do caçador, que chega, corta a barriga do Lobo e liberta a avó e a neta.
Chapeuzinho, então, joga pedras na barriga do Lobo, que morre. E aprende a
obedecer a mãe, a andar sempre no caminho certo, e a não dar papo para lobos...
Fonte:
Maria Cristina Pedroso Macedo | Puxador de Conversa
(JA, Abr19)