E que tal um
ministro para a solidão? Não é ideia minha. Já existe. No Reino Unido, a premiê
Theresa May considerou a solidão ‘a mais
triste realidade da vida moderna’. Para combater esse mal, indicou a ministra
Tracey Crouch para ‘desenvolver’ uma ‘estratégia’ adequada.
Confesso que a
ideia me parece absurda. Tão absurda como haver um ministro para a tristeza ou
uma ministra para o fracasso. Razão óbvia: Theresa May está errada quando
acredita que a solidão é uma ‘realidade’ moderna. Não é.
A solidão, tal
como a tristeza e o fracasso, faz parte da condição humana, provavelmente desde
o momento em que os membros da espécie tiveram consciência de si próprios.
A solidão não
tem ‘cura’ porque, em rigor, não é uma doença. Exceto para a tradição racionalista
—antiga e moderna— em que Theresa May,
ironicamente tida por ‘conservadora’, se inspira.
Sobre o
racionalismo antigo, não é preciso um conhecimento íntimo de Aristóteles para
lembrar o seu argumento político primeiro: o homem é um animal social. O que
significa que o reverso desse desígnio só é admissível se estivermos na
presença de deuses ou bestas.
Por outras
palavras: viver é viver em sociedade, participando nos assuntos da cidade. Eis
a célebre ‘liberdade dos antigos’, na definição posterior de Benjamin Constant,
1767-1830: para os antigos, os homens só são livres pela submissão dos
interesses individuais às necessidades da comunidade.
Claro que o
cristianismo introduziu nesse conceito de liberdade uma mudança relevante, ao
proteger a inviolável —e solitária— ‘liberdade interior’ dos homens, e, no
limite, o direito dos mesmos em repudiarem a cidade terrestre.
Mas o
racionalismo floresceu e triunfou a partir de inícios do século 16: se todos os
problemas humanos têm solução, o desafio passa por encontrar a ‘técnica’
adequada para responder a tais problemas. ‘Ministério da Solidão’ poderia
perfeitamente ser o título de um livro de Francis Bacon (1561-1626).
Mas Theresa
May também está errada por outro motivo: e se o grande problema da ‘vida
moderna’ não for o excesso de solidão, mas a sua escassez?
Essa é a tese
de Michael Harris em ‘Solitude: In Pursuit of a Singular Life in a Crowded
World’. O livro é mediano, confesso, mas existem duas ou três observações que
merecem leitura e concórdia.
A primeira
delas é que a ‘vida moderna’ é uma gigantesca conspiração para abolir a
solidão. Basta escutar os desejos utópicos de um qualquer Zuckerberg
ensandecido: para os novos profetas do Vale do Silício, o ideal a atingir é um
mundo de conversas contínuas, em que a privacidade não passa de uma relíquia —e
todos podem espionar todos.
Alguns
números: em 2006, 18% da população mundial estava ligada à internet; em 2009,
25%; em 2014, 41%. E, para ficarmos nas ‘redes sociais’, 8% dos americanos
frequentavam esses espaços virtuais em 2005. Em 2013, o número andava nos 73%.
Em breve, a ‘conectividade permanente’ não será apenas total; será totalitária.
Infelizmente,
essas quimeras de ‘conectividade permanente’ nunca questionam qual o preço que
pagamos pela perda de solidão. Para Michael Harris, o prejuízo é triplo.
Sem uma boa dose de solidão, perdemos o tempo de quietude no qual as melhores e mais inesperadas ideias acontecem.
Sem uma boa
dose de solidão, somos incapazes de entender o que somos e não somos —no fundo,
o ponto de partida para haver um ponto de chegada que seja significativo e
real.
Sem uma boa
dose de solidão, nem sequer ganhamos o que de mais importante podemos oferecer
aos outros: uma disponibilidade genuína e limpa de ruído.
No Reino
Unido, Theresa May quer combater a
solidão. Se o objetivo do governo for ajudar os abandonados, os doentes e os
desprovidos, nada a opor. Para os restantes, talvez fosse mais útil ensinar que
a solidão não é uma anormalidade; é parte do que somos. Mas não apenas do que
somos; também do que precisamos.
De igual
forma, mais importante do que abolir a solidão é aprender a viver com ela; a
habitá-la com os instrumentos de uma cultura —a fruição da beleza, da memória,
do pensamento; a tratá-la pela segunda pessoa do singular. Quem sabe?
Pode ser que,
um dia, o medo da solidão se transforme em gratidão sincera por termos
encontrado a nossa companhia.
Texto:
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em ciência política |
FSP
(JA, Fev18)