O menino se encontrou caminhando por uma rua de uma cidadezinha desconhecida, sem saber quem era, de
onde tinha vindo nem para onde estava indo. Vestia-se como os demais meninos de
sua idade que via pela rua. Mas, além disso, não sabia mais nada.
Começou a observar as pessoas. Viu uma moça de pernas grossas, baixa, meio
gordinha que caminhava com os pés virados para o lado externo; um
homem enorme, de barba escura, que tomava cerveja num bar, com os cotovelos apoiados
no balcão, falando muito alto com todos com sua voz grossa; um padre apressado, magrinho, que cumprimentava quem
encontrava, demonstrando no cumprimento sua timidez e gagueira. Ele pensou: ‘Que pessoas
estranhas... Onde vim parar?’ Depois,
refletindo, considerou que todos podiam ser pessoas normais, e que apenas ele estava
percebendo suas características, porque não conhecia ninguém e as estava
observando. Quando estamos num meio familiar, nem notamos direito as pessoas; já
sabemos como elas são fisicamente, como falam, e como agem, então... Ali não;
todo mundo era estranho para ele.
Olhava os veículos que passavam soltando
fumaça e fazendo muito barulho. Viu algumas pessoas pedalando um equipamento
com rodas – quanto mais rápido pedalavam maior a velocidade do equipamento. Outros
montavam um grande animal de quatro patas, com dois grandes e curiosos
olhos e, além disso, tinham rabo.
Eventualmente viu um menino andando,
carregando uma grande mochila. O menino deixou cair algo e, ele, naturalmente prestativo,
apanhou e lhe entregou. O menino agradeceu. Ele perguntou aonde ele ia, e o
menino respondeu que estava indo para a Escola. Ele o acompanhou. Lá encontrou
uma quantidade enorme de outros meninos; foi apresentado e pediu para conhecer
o local. Eles lhe levaram e lhe mostraram as salas de aula, o quadro negro,
giz, quadra de esportes, etc. Ele estranhou tudo. Mas, ficou muito impressionado,
com a quantidade de crianças reunidas, e com a alegria que demonstravam por
estar ali, com o objetivo de aprender. Estranhou também porque, apesar de toda
aquela estrutura, parecia que eles sabiam tão pouco. Entretanto, concluiu que, para formar opinião, precisava
conhecer melhor o sistema.
Já era quase perto do meio dia, e ele
começou a sentir fome. Dinheiro não
tinha. O que faria? Teve uma ideia. Iria
se oferecer para o dono do bar pelo qual passara, para limpar as mesas e o
chão, em troca de comida. E assim fez.
O dono do bar olhou para ele e
perguntou seu nome. Ele respondeu inventando: Roberto. Perguntou sobre seus
pais, e ele disse que estava viajando sozinho, indo para casa dos seus avós que
moravam numa cidade próxima. Resolvera para um pouco para descansar porque
vinha caminhando já há vários dias. O homem estranhou, mas concordou. Autorizou
que ele se acomodasse e utilizasse um pequeno quarto que existia no depósito,
pelo tempo que fosse ficar ali. Indicou onde era a cozinha, e pediu para ele se
apresentar para o cozinheiro. Poderia começar de imediato. E, quando o
movimento do almoço estivesse terminado, poderia comer.
E foi assim. Ele se apresentou para o
Manuel, que era como se chamava o cozinheiro, e ele orientou. Disse que, em pouco
tempo, as pessoas iriam começar a chegar, deu-lhe um pano e pediu para ele
limpar as mesas, e colocar pratos e talheres em cada uma. Mostrou-lhe onde
ficavam guardados os utensílios.
Ele começou a trabalhar, fazendo o
que lhe mandavam e o que os clientes pediam. Sempre observando. Como se sentia
muito estranho ali, concluiu que precisava compreender melhor aquele povo, para
poder agir adequadamente, sem contrariar nenhuma norma local.
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Esse rapaz não sabia ainda, mas ele
veio do futuro. É por isso que, tudo o que ele vê, lhe parece familiar e, ao
mesmo tempo tão distante.
Lá de onde ele veio:
- Os humanos tem um corpo perfeito: eles nascem com uma prévia seleção de genes. Assim, raramente ficam doentes, e vivem mais do que o dobro dos humanos deste tempo em que ele estava.
- A Educação é aplicada com métodos personalizados para cada um, com utilização de instrumentos ainda nem imaginados nos dias em que ele estava – tudo fruto da unificação e disponibilização do conhecimento, com computadores que atingiram um nível de inteligência superior ao do homem comum, e que ‘conversam’ ente si. O ensino foca principalmente o aprimoramento dos pontos fortes e talento dos indivíduos.
- Os espaços físicos do planeta são ocupados dentro de um planejamento estratégico que considera o todo. Os preservação dos seres humanos é priorizada, embora isso implique na preservação das características básicas da Terra.
- A humanidade se conscientizou da necessidade e prioriza a vida em sociedade, para sua segurança e evolução. Todos se respeitam e se ajudam, no sentido de que o bem comum antecede o bem individual.
- As fronteiras entre os povos praticamente inexistem. Todos os países são associados e se subordinam a um poder central escolhido democráticaticamente entre eles, e que é renovado por um período determinado. Os deslocamentos pessoais e de mercadorias, são rápidos – quase instantâneos – e de baixo custo. Independem da distância e da utilização de meios de transporte. Isto foi viabilizado pela utilização de métodos, aplicativos, e instrumentos desenvolvidos para transferência da matéria através da desintegração celular local e reintegração à distância.
- Quanto ao trabalho, as pessoas assumem responsabilidades perante a sociedade, definidas pelas necessidades, suas habilidades e conhecimento. O trabalho é prazeiroso e é uma fonte de motivação para aperfeiçoamento e desenvolvimento pessoal. Eles não trabalham por dinheiro, mas sim por créditos. Quem contribui para a sociedade, recebe em troca créditos que permitem ser feliz, com tudo o que isso significa para cada um. Quanto maior a contribuição, maior o crédito.
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Passaram-se semanas e meses. Agora
tudo lhe parecia familiar. E, pouco a pouco, começaram a lhe retornar,
como num sonho, a lembranças de onde e do tempo originais. Até que tudo lhe ficou muito
claro. Num determinado dia, na casa onde morava, estava na varanda, que
ficava a muitos metros do solo, brincando com um instrumento que parecia uma
pequena faca. Ele atirava essa faquinha numa superfície flexível e, se
acertasse, ela penetrava e se fixava lá. Isso requeria prática e habilidade. E
ele ficou fazendo isso repetidas vezes, tentando melhorar, acertar cada vez
mais. A repetição exagerada e focada devem ter criado um estado mental tal que, num determinado momento, ele, sem se dar conta, se viu
transportado para uma outra dimensão, para uma outra época.
Mas agora ele se lembrou de tudo. Ao se conscientizar
disso, olhou para o local onde estava no presente, como quem olha uma foto
desbotoada que carrega suas lembranças mais antigas. Aquelas pessoas, de certa forma, eram os seus
antepassados. Ele sabia das suas dificuldades atuais, e de tudo o que ainda
teriam que lutar para se superar, para concretizar aquele que seria o mundo do
futuro.
Saiu para o trabalho e, naquele dia,
tratou a todos com muito mais carinho do que antes. Sentia-se agora como nunca
havia se sentido, desde que chegara. Agora ele sabia - não era um estranho, era parte deles.
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Numa determinada manhã, acordou e
estranhou tudo. Estava deitado na cama da sua casa original. Não estava mais no
seu quartinho do bar. Tudo voltara ao que era antes. Ficou feliz e, ao mesmo tempo, lamentou. Já havia se apegado à tudo o que existia lá. As pessoas
com seus defeitos, com suas dificuldades, eram autênticas e comunicativas. Embora
não demonstrassem, ou não percebessem, ajudavam a quem estivesse em necessidade
– como foi o caso dele. Explicavam o que fosse necessário, quando perguntados.
Davam estadia e alimento para quem não tivesse, emprego para quem quisesse
trabalhar... Não sem razão conseguiram – sim eles conseguiram – construir o
mundo em que ele agora vivia e desfrutava de tantas coisas.
Aquela nostalgia lhe trouxe lágrimas nos
olhos. Agradeceu em pensamento a todos
aqueles que tivera oportunidade de conhecer e de conviver naquele curto período
de tempo, naquele pedaço do seu mundo passado.
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"No tempo certo, as coisas acontecem meio que de repente."
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Imagem: Filho de David e Victoria Beckham, trabalhando como garçom em Londres
(JA, Jun15)