Nos 200 anos do
nascimento de Marx - um homem livre não precisa de falsos profetas
ilustração Angelo Abu |
Karl Marx
nasceu 200 anos atrás e ainda não morreu. Eis, em resumo, a tese da efeméride.
Lemos ensaios, de esquerda ou de direita, e todos parecem convergir nesse
ponto: hoje, somos filhos de Marx e a sua análise do sistema capitalista não
envelheceu uma ruga.
Respeito a
sabedoria alheia. Mas desde já confesso a minha incapacidade para avaliar
cientificamente Marx. Essa incapacidade não lida apenas com o fato óbvio de
Marx ter servido de inspiração para regimes criminosos. Meu problema com Marx é
outro: olho para ele como um profeta, não como um filósofo, e muito menos como
um cientista.
A culpa não é
minha. É de Raymond Aron, que dinamitou a ponte marxista para sempre. Mas,
antes de Aron, apareceu Adam Smith com uma observação que nunca entrou na
cabeça estreita de Marx: a ‘sociedade comercial’ (expressão de Smith), antes de
ser o mais eficaz mecanismo de produção de riqueza que a humanidade já
conheceu, começa por ser uma resposta à própria natureza humana.
Existe nos
seres humanos uma propensão para ‘negociar, permutar ou trocar uma coisa por
outra’ de forma a ‘melhorarem a sua condição’.
Naturalmente
que esse ‘sistema de liberdade natural’ (outra expressão de Smith) pode ser
subvertido e corrompido —basta olhar ao redor. Mas os abusos do sistema não
provam a iniquidade desse sistema; provam, apenas, a iniquidade de vários
agentes do sistema, para os quais devem existir leis gerais e punições
exemplares.
Marx nunca
entendeu essa necessidade básica da nossa natureza comum. Mas entendeu outra
necessidade, provavelmente mais forte: somos seres religiosos por definição. O
que significa que o declínio da fé tradicional deve ser compensado por outra fé
—ou, como diria Raymond Aron, por uma ‘religião secular’.
Lemos os textos
de Marx e é impossível não vislumbrar na prosa uma espécie de mimetismo
teológico da mensagem judaico-cristã.
Primeiro, a
condenação de um mundo corrupto, onde o pecado original é substituído pela
exploração capitalista sob a forma da mais-valia.
Depois, a
certeza milenarista de que esse mundo alienante irá soçobrar sob o peso das
suas próprias contradições.
Finalmente, a
adoração do proletariado como rosto do messianismo redentor.
O apelo de
Marx é religioso, não racional. Com uma vantagem sobre as religiões
tradicionais: o paraíso será na Terra, não no distante reino dos céus. Como
resistir a essa profecia?
Muitos não
resistiram —e Lênin, a partir dos textos sacros, ergueu a primeira igreja.
Outras se sucederam —com as suas liturgias, heresias e fogueiras.
Mas a derrota
do marxismo não se explica apenas pelos trágicos resultados. Nos países
realmente capitalistas, onde Marx antecipava o início da revolução, o
proletariado preferiu um papel mais modesto no grande drama da humanidade. Para
que destruir o sistema quando era possível se beneficiar dele?
A socialdemocracia
respondeu à pergunta, chamando os trabalhadores para o jogo democrático;
ampliando o papel do Estado nas áreas sociais; e redistribuindo a riqueza
disponível.
O proletariado
de Marx só existiu na imaginação dele. Na realidade, o que existiu foi uma
classe de escravos nas ‘democracias populares’ —e uma nova classe burguesa nas
democracias liberais.
Aliás, se
dúvidas houvesse, bastaria citar outra efeméride do ano corrente. Falo do Maio
de 68. Ou, como defende Mitchell Abidor, dos vários maios de 68.
Em artigo para
o jornal The New York Times, Abidor relata a sua experiência como autor de uma
história oral sobre o período. Entrevistou todos os atores principais:
trabalhadores, estudantes, agricultores. E concluiu que todos desejavam coisas
diferentes.
Os estudantes,
com o mesmo fervor religioso dos marxistas, desejavam a reinvenção do mundo em
termos vagos, delirantes, violentos.
Os
trabalhadores que Abidor escutou desejavam ‘o pão e a manteiga’: as coisas
tangíveis que permitem a cada um “melhorar a sua condição”.
Como afirma
uma das trabalhadoras fabris que o autor entrevistou, era doloroso ver os
estudantes a incendiar carros quando o verdadeiro ‘proletariado’ sabia que eram
precisas muitas horas de sacrifícios para comprar um.
Nos 200 anos
do nascimento de Marx e nos 50 anos do Maio de 68, talvez a conclusão seja a
mesma: um homem livre não precisa de falsos profetas. Apenas de lucidez e
coragem para enfrentar e reformar o mundo sem esperar o paraíso na Terra.
Texto: João Pereira Coutinho, escritor português e doutor em ciência
política | FSP
(JA, Mai18)