Continuam reaparecendo referências ao artigo 142 da Constituição, onde alguns querem enxergar um poder moderador dos militares, sinal verde para intervenções na cena política. Em 2020, quando Bolsonaro fez insinuações nessa linha, o PDT pediu esclarecimentos ao STF.
Pelo Ministro Fux, então
presidente, o Supremo respondeu que o tal ‘poder moderador’ não tem base
constitucional. ‘Confiar essa missão às Forças Armadas violaria a cláusula
pétrea da separação de poderes, atribuindo-lhes, (...) o poder de resolver até
mesmo conflitos interpretativos sobre normas da Constituição’.
Na mesma ocasião, a Mesa
Diretora da Câmara declarou: ‘Não existe país democrático do mundo em que o
direito tenha deixado às Forças Armadas a função de mediar conflitos entre os
Poderes constitucionais’.
Essas manifestações condizem
com as lembranças de FHC, Nelson Jobim, Miro Teixeira e outros
ex-constituintes, para quem aquele artigo jamais teve o alcance pretendido pela
direita golpista: sendo as Forças Armadas organismos de Estado, não de governos
específicos, não lhes cabe tutelar poderes constituídos.
Mas a ladainha prossegue, a
ponto de bolsonaristas estarem inconformados porque os militares não impediram
a posse de Lula. A insistência faz lembrar uma fala do Marechal Castelo Branco
sobre os que rondavam os quartéis buscando apoios para maquinações políticas.
Em sua curiosa linguagem, dizia ele: ‘como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos
bivaques bulir com os granadeiros’. Hoje, uma das principais vivandeiras é o
advogado Ives Gandra, destacado ideólogo do golpismo – ex-professor da Escola
de Estado Maior do Exército, que tem audiência nos quartéis.
No livro ‘Poder Camuflado: os
militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro’, Fabio
Victor recapitula as discussões da Constituinte sobre aquele artigo. Então, conta
ele, a ideia inicial da Comissão de Sistematização era atribuir às Forças
Armadas o papel de assegurar a soberania, e a garantia dos poderes
constitucionais. Mas não teriam mais, como nas constituições anteriores, o de
garantidoras da lei e da ordem.
A proposta logo despertou
reações da caserna, lideradas pelo General Leônidas, Ministro do Exército, que
montara um ‘lobby’ para defender na Constituinte os interesses da corporação.
Muitos congressistas se sintonizavam com as posições dos militares.
Para superar o impasse, os
senadores FHC e José Richa, incumbidos da redação do artigo,
estiveram ouvindo o ministro. Como solução conciliatória, FHC acabou
recorrendo a uma ideia de Afonso Arinos: ‘a garantia da lei e da ordem
continuaria a ser atribuição castrense, mas as Forças Armadas só seriam
acionadas para tal função por iniciativa de qualquer um dos Três Poderes’.
No encaminhamento da votação,
Genoino (PT-SP) foi contra: ‘Quando falamos ordem, estamos dando um
sentido de que qualquer desordem – social, pública, econômica - poderá
justificar a intervenção das Forças Armadas, e isso quer dizer que elas poderão
cumprir o trabalho que deve ser feito pela polícia ou por outra instituição’.
Replicando, FHC ponderou
que, historicamente, as instituições já recorriam às Forças Armadas com tal
objetivo, lembrando o papel importante em garantir a segurança nas eleições, em
rebeliões de PMs, e em outras circunstâncias. A questão central é quem
dá a ordem, e as Forças Armadas hão de ser na democracia, hierarquizadas,
obedientes, silentes, e fora do jogo político; obedecem à decisão que
explicitamente diz que é de um dos Poderes constitucionais.
Por ampla maioria, aprovou-se
o texto estabelecendo que ‘As Forças Armadas (...) se destinam à defesa da
Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem’.
Percebe-se uma redação meio
tortuosa, e nisso os golpistas procuram se basear: retorcem mais ainda,
tentando forçar uma interpretação que lhes sirva – mas que não está no texto, e
tampouco tem coerência com o contexto da Carta Constitucional. Em momento
nenhum, aliás, o artigo autoriza que um dos poderes constituídos convoque as
Forças Armadas para intervir em outro - seria como se a Constituição previsse
sua própria ruptura, algo contraditório.
Enquanto isso, Lula, gato escaldado, corteja as simpatias militares com verbas públicas para os brinquedinhos bélicos, acenos de aumento de soldos, e a preservação de regalias.
Fonte: A.C. Boa Nova
(JA, Ago23)