Jack Glaser estuda como viés racial influencia ação humana, com foco na atividade policial
De acordo com as pesquisas de Jack
Glaser, psicólogo social e professor da Universidade da Califórnia em Berkeley,
não é necessariamente racismo. Ele diferencia racismo
de viés racial implícito - um
processo não consciente ao qual os seres humanos estão sujeitos.
‘Experimentos psicológicos são muito claros em mostrar que
mesmo pessoas de boa-fé vão julgar de forma diferente indivíduos que sejam
iguais em tudo, menos na raça’, diz Glaser, autor de diversos estudos que analisam
como estereótipos, preconceito e discriminação impactam a ação humana,
especialmente a ação policial.
Glaser diz que os vieses raciais são adquiridos ao longo da
vida, no ambiente social, e interferem no julgamento de qualquer pessoa,
sobretudo em situações de maior estresse ou pressão do tempo.
‘Mesmo se o policial tiver todas as boas intenções do mundo,
ele pode nem perceber que está sendo influenciado, e acaba considerando uma
pessoa mais perigosa ou mais suspeita por causa de estereótipos raciais implícitos’,
afirma Glaser, autor do livro ‘Suspect Race’ (Raça Suspeita).
A distinção não tem apenas valor acadêmico. Para Glaser,
separar atitudes resultantes de racismo, de um lado, daquelas decorrentes de
viés racial implícito, de outro, faz diferença na luta contra comportamentos
discriminatórios.
Um estudo recente mostrou que, no Rio de
Janeiro, negros são mais abordados pela polícia do que brancos, numa proporção
superior a seu peso na população. As autoridades dizem que não há viés racial.
Isso é possível?
Até é possível na teoria, mas é extremamente improvável. Viés
racial faz parte da condição humana. Todos nós temos vieses em relação a um ou
mais grupos, e policiais não são imunes a isso. A questão é saber se eles têm o
treinamento e a cultura que poderiam ajudá-los a evitar a influência de vieses
raciais implícitos, como estereótipos que associam pretos e pardos a crime e
violência.
Em um de seus artigos, o sr. diz que o viés
implícito se manifesta de modos diferentes de acordo com o grau de estresse
envolvido. O viés implícito tende a ser menor numa abordagem do que num
tiroteio, por exemplo?
O viés implícito opera fora do campo consciente. Mesmo se o
policial tiver todas as boas intenções do mundo, ele pode nem perceber que está
sendo influenciado, e acaba considerando uma pessoa mais perigosa ou mais
suspeita, por causa de estereótipos raciais implícitos.
Esse processo tem efeitos diferentes em situações mais
intensas emocionalmente, do que em situações mais tranquilas. Em casos de uso
de força, é especialmente difícil para o policial superar o viés, sobretudo o
estereótipo que associa pessoas negras a crime. Nos EUA, por exemplo, entre pessoas mortas a tiros pela
polícia, a probabilidade de um afro-americano estar desarmado é cerca de duas
vezes a de um branco.
Mas isso não significa que seja fácil evitar o viés implícito
em situações menos tensas, como uma abordagem. É preciso haver motivação,
oportunidade e estratégias específicas. Na ausência disso, os policiais vão
tratar negros como mais suspeitos.
Quais são essas estratégias?
A estratégia genérica é desacelerar. Quanto mais você se
engajar em processos conscientes, mais os seus julgamentos e suas decisões vão
se basear nesses processos e nas observações. Mas tenho que dizer que
psicólogos sociais temos tentado várias coisas diferentes para reduzir o viés
implícito de forma prolongada, mas ainda não temos nada que dure mais do que um
dia, mais ou menos.
Na minha opinião, a melhor coisa que as polícias podem fazer
para reduzir a discriminação é diminuir o número de abordagens desnecessárias,
de situações em que o agente tem grande poder discricionário. Se há uma prática
de parar e revistar pessoas sem muita base para suspeita, isso vai ser feito
com discriminação racial.
Um argumento frequente em relação à polícia é o
seguinte: o patrulhamento se dá em áreas com maior incidência de crimes; essas
áreas tendem a estar em regiões pobres; no Brasil, há maior concentração de
negros em áreas pobres; logo, a polícia aborda mais pessoas negras porque elas
estão sobre representadas nas áreas de patrulhamento. Isso faz sentido?
Faz sentido até certo ponto, e ouvimos a mesma coisa nos EUA. Mas há dois problemas nesse argumento. Primeiro, se
o maior emprego de policiais em áreas com maior incidência de crimes ocorre não
como resposta a chamados, mas porque foi definida essa linha de ação, o
resultado é que pessoas negras vão ser presas a uma taxa superior à taxa de
crimes cometidos por elas.
Isso a análise matemática mostra. Digamos, se os negros
cometem o dobro de crimes em relação aos brancos em determinada região e o
Estado dobra o número de policiais ali, o número de negros presos será quatro
vezes o de brancos.
O segundo problema é que cada indivíduo tem direito a ser
tratado com justiça. Ainda que uma região tenha criminalidade alta, a imensa
maioria dos moradores será inocente, só que esses moradores estarão sujeitos a
mais abordagens, mais atos invasivos da polícia, mais perda de dignidade.
É possível distinguir viés implícito associado
à situação de pobreza de viés implícito relacionado à cor da pele?
Sim. Mas é da natureza humana ver primeiro atributos como cor
e gênero. Pobreza é menos evidente. Então o que acontece é que uma pessoa vê um
indivíduo preto ou pardo e assume que ele é pobre, não o contrário. Pobreza
também interfere, mas o estereótipo racial influencia mais em termos de
suspeição policial.
Quais são as principais causas do viés
implícito?
Eles são adquiridos ao longo da vida. Estão no nosso
ambiente, na ficção, na não ficção. Eles são transmitidos por parentes e
amigos. Muito do que as pessoas aprendem sobre estereótipos vem pelo
noticiário.
Essa é uma discussão delicada. Nos EUA, há certos crimes que afro-americanos cometem com
mais frequência do que brancos, em geral por terem menos oportunidades de
educação e emprego. Quando a foto de um criminoso preso é divulgada no jornal
ou na TV, isso influencia bastante a
percepção sobre quem está se envolvendo em crimes.
É uma associação fácil de reforçar, e difícil de atenuar. Por
isso é difícil eliminar o viés. Você pode fazer algum treinamento, mas depois
volta ao seu ambiente normal e se expõe de novo a essas associações.
Numa iniciativa interessante, o chefe de polícia de São
Francisco parou de enviar para a imprensa fotos de quem foi preso porque essas
pessoas eram mais frequentemente negras e pardas, mas elas só tinham sido
presas, não condenadas. Ele reconheceu que essa prática provavelmente estivesse
promovendo estereótipos raciais.
Em seus estudos, o sr. diz que o viés racial implícito se manifesta mesmo na ausência de
pensamentos explicitamente racistas. Como isso corre?
Existem:
o Viés implícito, que opera fora do campo de conhecimento consciente,
o Viés explícito, que são estereótipos dos quais temos consciência, e que podemos tentar superar,
o
Viés aberto, que são vieses que as pessoas
querem demonstrar.
Muitas pessoas estão em algum ponto entre o viés explícito e
o aberto.
Há também diferenças ideológicas. Nos EUA, pessoas mais conservadoras do ponto de vista
ideológico são mais propensas a bancar o viés explícito e transformá-lo em viés
aberto. Mas é totalmente possível perceber um viés explícito, e agir para não
ser influenciado por ele.
Só que ainda sobra o viés implícito. Mesmo sem você perceber,
ele vai te levar a fazer inferências sobre o comportamento das pessoas. Esse é
o perigo do viés implícito, porque você não o percebe interferindo nos seus
julgamentos.
E como esses processos se relacionam com a
noção de racismo estrutural?
Eu vejo o racismo estrutural como algo construído dentro dos
sistemas sociais. Por exemplo, acesso desigual a educação, a oportunidades de
emprego, a moradia em certos bairros. São aspectos estruturais por trás de
desigualdades raciais que perpetuam estereótipos usados para explicar ou
justificar essas mesmas desigualdades.
O viés implícito está dentro da cabeça de cada um, embora
seja ocasionado pelo ambiente social. Então é possível que alguém lute contra o
racismo estrutural e ainda assim tenha um viés implícito que o leve a
desconfiar de indivíduos de um determinado grupo, mesmo que pense estar
baseando sua desconfiança em algum comportamento observável.
Experimentos psicológicos são muito claros em mostrar que
mesmo pessoas de boa-fé vão julgar de forma diferente indivíduos que sejam
iguais em tudo, menos na raça. E isso acontece especialmente sob pressão do
tempo.
Qual a vantagem de fazer essa distinção entre
racismo e viés racial?
Penso que é muito importante, porque chamar policiais de
racistas não ajuda a melhorar a situação. A tendência é que eles se tornem
muito defensivos, o que aliás vale também para profissionais da saúde,
educadores, pessoas do mundo corporativo etc.
Dizer que as pessoas são racistas, que elas participam de um
sistema que oprime um grupo populacional inteiro, e que elas têm consciência
disso, só vai levá-las a levantar barreiras defensivas.
Mas se for possível dizer: ‘Eu te entendo, você tem boas
intenções, você valoriza a igualdade de oportunidades e a dignidade humana, mas
você, assim como eu, é vulnerável a ter seus julgamentos enviesados por
processos que operam fora do campo consciente; então vamos trabalhar para
evitar esses vieses’, aí você consegue muito mais receptividade.
Uma série de reportagens mostrou uma maioria de
homens negros entre pessoas encarceradas após erro de reconhecimento. Existe
alguma maneira eficiente de combater o viés nessa situação?
Sim. Alguns departamentos de polícia dos EUA estão adotando procedimentos de identificação menos
propensos ao erro. Por exemplo, mostrar imagens dos suspeitos numa sequência,
não todas de uma vez. Quando a testemunha olha todas as imagens de uma vez, ela
vai escolher, entre aquelas opções, o suspeito mais parecido com o criminoso.
Se as imagens aparecem em sequência, a testemunha vai olhar até achar alguém
que ela identifique como o criminoso.
Nesses casos de reconhecimento entra em operação outro
mecanismo psicológico que se chama efeito de homogeneidade
de exogrupo. É um fenômeno pelo qual é mais difícil diferenciar
pessoas de outro grupo, especialmente outro grupo racial. É aquela expressão
antiga: ‘Eles parecem todos iguais’.
Se a testemunha for branca e tiver que identificar um
suspeito negro, ela terá mais chances de se confundir. Ainda mais porque grupos
majoritários tendem a se misturar apenas entre si. Então, as pessoas brancas
tendem a ser muito ruins em diferenciar pessoas de outros grupos.
Graduado em ciência política pela Universidade Estadual de Nova York e doutor em psicologia pela Universidade Yale, é professor da Escola Goldman de Políticas Públicas da Universidade da Califórnia em Berkeley, e pesquisador do Center for Policing Equity, nos EUA. É autor do livro ‘Suspect Race – Causes and Consequences of Racial Profiling’ (Oxford, 2014; raça suspeita causas e consequências do perfilhamento racial).
Fonte: Uirá Machado | FSP
(JA, Abr22)