Na Guerra Civil Espanhola, voando em apoio ao General Franco, aviões da Alemanha nazista arrasaram a cidadezinha de Guernica. Ante a indignação internacional, os franquistas propalaram que não houvera massacre: fora mero embuste arquitetado pelos republicanos. Amplamente desmentida, a patacoada franquista caiu no ridículo. Mas quem melhor conscientizou o mundo para o acontecido não foram pesquisadores, e sim Picasso, com seu célebre quadro.
Agora, são Putin e companhia que tentam tapar o sol com a
peneira. O Kremlin está processando o jornalista russo Aleksandr Nevzorov, hoje
exilado, por retransmitir notícia do bombardeio da maternidade em Mariupol. A
versão oficial ˗ já desprezada como a de Franco em Guernica ˗ foi que se
tratara de encenação ucraniana. Provavelmente, dirão o mesmo do bombardeio do
teatro que abrigava civis desalojados.
Já são numerosos os jornalistas russos que deixaram os
empregos, e até o país, inconformados com as lorotas oficiais. Na TV estatal, foram quatro ou mais. Como Marina Ovxyannikova,
aquela que interrompeu o noticiário do Canal 1, onde trabalhava, com o cartaz ‘Aqui, estão mentindo para você’.
Falando na sede parisiense de ‘Repórteres Sem Fronteiras’,
Zhanna Agalakova, ex-correspondente do Canal 1, assim qualificou a versão oficial de que as tropas russas foram à
Ucrânia combater nazistas: ‘Jogada fraudulenta e desavergonhada!’. Segundo tal
versão, a Ucrânia seria nazista, pouco importando que tenha presidente judeu (neto de oficial do Exército Vermelho
que foi condecorado na luta contra os nazistas, e com parentes vitimados no
Holocausto) nem que a
extrema-direita não tenha conseguido emplacar nenhum parlamentar na última
eleição.
Ainda segundo o Kremlin, haveria genocídio no leste da
Ucrânia. Mas a Human Rights Watch, defensora internacional de direitos humanos,
não confirma o tal ‘genocídio’ ˗ para ela, existem realmente abusos, até
crimes, mas são de parte a parte.
Após a invasão, o governo russo fechou a Eco de Moscou, rádio
de linha liberal, e bloqueou o acesso ao Facebook, Instagram e outros ‘sites’.
A TV Rain, canal independente, saiu do ar
para resguardar a segurança do seu pessoal. Hoje, após duas advertências dos
censores, Dmitry Muratov, ganhador do Nobel da Paz, anunciou que seu jornal
Novaya Gazeta suspenderá temporariamente a publicação.
Dizem que a primeira vítima das guerras é a verdade. Nenhuma
surpresa que de ambos os lados haja boataria. Mas nem todas as versões são
equivalentes, ou sequer corretas. Afinal, quem foi que ameaçadoramente
concentrou tropas e armamentos pesados na fronteira? Quem invadiu quem?
Mas a turma de Putin tem inovado: montou uma suposta
verificação de ‘fake news’ ˗ só que com a originalidade de ser, ela própria,
mentirosa. Assim:
1. Importa vídeos
de ataques ocorridos em outros tempos e lugares
2. Diz que os
ucranianos os estariam falsamente atribuindo aos russos
3. Afirma (sem provas) que o material andaria circulando na
Ucrânia
4. Como conclusão, alardeia que o outro lado
estaria espalhando incessantes mentiras contra Putin e seus amáveis pelotões.
Através da tecnologia da informação, o ProPublico ˗ este,
sim, um competente verificador de notícias ˗ detectou em março pelo menos doze
vídeos desses, elaborados especificamente para pintar os ucranianos como
autores de ‘fake news’. Objetivo: desacreditar as notícias dos bombardeios
russos.
Segundo Hannah Arendt, tiranos que querem controlar as massas
não precisam de crenças; basta a confusão. Se todos mentem para você ˗ escreveu
˗, a consequência não é você acreditar nas mentiras. É pior: ninguém mais
acreditar em nada. Com um povo assim, faz-se o que se quiser.
Mas embora a maioria dos russos esteja condicionada por
noticiários sob censura, percebem-se brechas de dissensão. Exemplos:
o O êxodo, com
proporções históricas, de jovens profissionais deixando o país.
o A parcela de opositores que preferiram
permanecer na Rússia, apesar das mais de 15.000
detenções sofridas; entendem eles que assim se farão ouvir melhor.
o Os milhares de
cientistas que ousaram assinar um manifesto contra a guerra.
o Os doze soldados expulsos do exército por se
recusarem a cruzar a fronteira ucraniana.
o Ou mesmo Anatoly
Chubais, personagem do escalão superior, que se demitiu e saiu da Rússia.
Putin pode arrasar a Ucrânia. Mas as fabulações de sua turma
serão um dia arquivadas com as de Franco, Pinochet e outros déspotas não
esclarecidos.
Na ocupação nazista de Paris, um dia a Gestapo apareceu no ateliê
de Picasso. Vendo ali Guernica, o capitão perguntou:
– Foi você que fez?
– Eu, não! Foram vocês!...
(JA, Mar22)