O que levou o Brasil a se manter aglutinado — e a receber respeito internacional depois da emancipação da metrópole — apesar da chaga da escravidão
Como é ensinado há quase dois séculos nos colégios, as
turbulências que sacudiam Portugal e boa parte da Europa se refletiram na
mudança da Corte para o Rio de Janeiro, na Independência e na instauração da
monarquia no Brasil.
A ruptura com a metrópole europeia é atribuída a vários
fatores, e esmiuçada ao detalhe, mas se dá pouca ênfase à etapa seguinte: por
que o espaço colonial português foi o único agregado territorial europeu nas
Américas que não se fragmentou ao se tornar independente? Como a América portuguesa
permaneceu unida? A resposta a essa pergunta ajuda a entender os
acontecimentos de 1822 e a fundação do Império. Terá sido a existência de uma
língua comum que manteve o país unificado desde então? Não é razão suficiente.
Falava-se espanhol da Patagônia até a Califórnia, em largas extensões das
Américas, nos quatro vice-reinos espanhóis mais tarde transformados em quase
duas dezenas de países distintos.
Na realidade, no processo de emancipação latino-americano
houve uma etapa intermediária, em que emergiram repúblicas plurinacionais
independentes, derivadas dos vice-reinos espanhóis:
v Entre 1819 e 1831 existiu a Grande Colômbia, reunindo a Venezuela, o Equador, a Colômbia e o Panamá.
v Houve ainda a República Federal da América Central (1823-1841), que agregava Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica.
v
Enfim,
vizinho ao Brasil, na continuidade territorial do vice-reino do Rio da Prata,
surgiu um novo Estado independente, as Províncias
Unidas do Rio da Prata (1810-1831), que também se separaram para dar
lugar à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e à Bolívia.
Diante do fracasso dessas uniões políticas, qual terá sido,
portanto, o fator aglutinante da integridade territorial do Brasil? A monarquia!
Foi, de fato, o governo bragantino do Rio de Janeiro que
garantiu, pelo consentimento e pela violência, sua autoridade sobre toda a
extensão da América portuguesa, e promoveu a inserção do novo Estado no
concerto das nações ocidentais.
Note-se que os dois lados do exercício de um governo independente — a afirmação de sua soberania interna. e seu reconhecimento internacional — nem sempre se completam. Há seis nações autoproclamadas independentes que não são reconhecidas por nenhum país membro da ONU, nem por nenhuma organização internacional, a exemplo do Emirado Islâmico do Afeganistão, criado em agosto de 2021. Não basta brandir espadas, e levantar bandeiras, para ser independente: é preciso ainda obter o reconhecimento internacional que certifique as fronteiras da nova nação, e a legalidade de seu governo.
Desse modo, vale a pena sublinhar o contexto internacional
que levou a realeza portuguesa a mudar sua capital para o outro lado do oceano,
em 1808, fato inédito na história ocidental.
Vale lembrar também da hegemonia inglesa que condicionou a independência do
Brasil.
Em 1798, a França e a Espanha assinaram uma
aliança militar que ameaçava Portugal, aliado tradicional da Inglaterra. Tal
coligação foi fragorosamente derrotada na batalha naval de Trafalgar (1805).
Com a destruição das frotas espanholas e francesas, a
Inglaterra conquistou a supremacia marítima global, que definiria todo o século
19.
Vinda da Corte Portuguesa para o Brasil
Sem navios de apoio, as tropas francesas marcharam até
Lisboa. Organizada pelo embaixador inglês Strangford, e escoltada pela marinha
de guerra inglesa, a viagem da Corte até o Rio de Janeiro, longa e árdua, não
derivou da alegada premonição luso-brasileira sobre o Brasil independente.
Anos depois da transferência da Corte, Sá da Bandeira, chefe
do governo português, pôs os pingos nos ‘is’ dessa interpretação, ao responder
ao embaixador inglês em Lisboa, que exigia constantes vantagens de Portugal
pela ajuda da marinha inglesa em 1808. Assim, ele lembrava ao embaixador que a
Corte, escapando do exército francês sem navios para ir em seu encalço, poderia
ter se estabelecido na Ilha da Madeira.
A transferência para o Rio de Janeiro, escreveu Sá da
Bandeira, foi resultado da pressão inglesa, interessada na abertura dos portos
brasileiros ao comércio de Londres e Liverpool. Ou seja, a Corte veio parar no
Rio de Janeiro porque a Inglaterra, entravada no seu comércio ultramarino,
queria obter acesso aos portos do maior exportador agrícola da América Latina.
No meio-tempo, consolidando seu domínio no Atlântico Norte,
após a Batalha de Trafalgar, a Inglaterra ampliou o controle do Atlântico Sul. A
Cidade do Cabo foi tomada dos holandeses em 1806,
enquanto tropas britânicas atacaram as forças espanholas no Rio da Prata (1806 e 1807).
Do Rio de Janeiro, Strangford e a frota inglesa garantiram, a
partir de 1808, apoio diplomático e militar aos rebeldes platinos na sua luta
pela independência da Espanha.
Os entraves ao comércio ultramarino britânico decorriam das
tensões entre Washington e Londres, e de conflitos antilhanos que dificultavam
as exportações do sul dos Estados Unidos e do Caribe.
Somando-se ao Bloqueio Continental decretado por Napoleão
contra a Inglaterra (1806-1814), tais eventos provocaram uma alta de
preços no mercado londrino.
Na circunstância, a navegação direta entre Rio de Janeiro e
Liverpool se iniciou numa conjuntura em que a produção agroexportadora
brasileira era crucial para a economia inglesa.
Escravizados africanos no Rio de Janeiro
Paralelamente ao aumento das importações britânicas,
ampliou-se a introdução de africanos no Rio de Janeiro. Sucedeu que em 1807, tanto os Estados Unidos como a Inglaterra aboliram o
comércio transatlântico de escravizados africanos, embora mantivessem a
escravidão em seus territórios.
A oferta das feitorias africanas passou a ser monopolizada
pelos negreiros luso-brasileiros e, numa menor medida, hispano-cubanos. Acresce
que a mudança da Corte atraiu para o Rio de Janeiro o trato de escravizados
moçambicanos, antes restrito ao Oceano Índico.
Ativos no comércio africano desde o século 17, os negociantes do Rio de Janeiro, por meio da Mesa de
Inspeção, a Ibovespa da época, alertaram as autoridades sobre a oportunidade
extraordinária aberta aos negreiros luso-brasileiros: ‘pela falta de
concorrentes estrangeiros na Costa da África’, depois da saída dos
anglo-americanos do comércio transatlântico de africanos.
O Rio de Janeiro estendia sua rede negreira no oceano desde o
século 18, em resposta à demanda de cativos
gerada pelo ouro de Minas Gerais. Após 1808,
pelas razões evocadas acima, o movimento de expansão se amplificou,
transformando a Corte no maior porto negreiro das Américas.
Mais da metade do 1,8
milhão de africanos deportados para o Brasil entre 1808 e 1850 desembarcou
na Guanabara, e em portos adjacentes. Do total dos africanos introduzidos ilegalmente
no Brasil, entre 1831 e 1850, cerca de 72% foram trazidos para o Rio de
Janeiro. Na sequência, os deportados eram prioritariamente conduzidos para a
fronteira agrícola fluminense e paulista. No mesmo pique, o Brasil se tornou,
nos anos 1840, o maior produtor mundial de café.
Ironizando a bandeira do Império, que continha ramos de café
e tabaco no seu desenho, uma sátira portuguesa ao Hino da Independência cantava
um estribilho, associando a descendência africana dos brasileiros à sua
principal riqueza nacional:
‘Cabra gente
brasileira, do gentio de Guiné, que deixou as cinco chagas (de Cristo), pelos ramos de café’.
Para além da troça, cabe salientar a estreita conexão entre o
comércio de escravizados, a produção cafeeira no Sudeste, e a consolidação
nacional do Império. Havia também tráfico de africanos para os portos da Bahia
e, numa menor escala, de Pernambuco. Mas o Rio de Janeiro era o campeão
absoluto do Brasil e das Américas. Daí decorreram consequências relevantes para
a evolução política e econômica brasileira.
Como é sabido, boa parte do avanço do Sudeste em relação ao Nordeste na política brasileira, patente na segunda metade do século 19 e efetivada no século seguinte, deveu-se à influência da Corte e à ascensão do setor cafeeiro fluminense e paulista na esfera nacional. Contudo, é preciso ressaltar que as redes negreiras fluminenses, bem mais extensas e eficazes na pilhagem das populações africanas do que as da Bahia ou de Pernambuco, também tiveram um papel relevante na expansão cafeeira, e na supremacia do Sudeste sobre as outras regiões brasileiras.
No plano internacional, a Independência deu destaque à matriz
colonial transatlântica que unia o Brasil às feitorias portuguesas na África. O
mercado principal dessas regiões africanas era o Brasil escravista, ao qual
elas estavam ligadas por um comércio bilateral: 95% das viagens, que desembarcaram 4,8
milhões de africanos no Brasil, iniciaram-se nos portos brasileiros.
Nesse contexto, após a chegada da notícia do Sete de
Setembro, surgiram movimentos de adesão ao novo governo brasileiro entre os
negreiros portugueses e luso-africanos de Ajudá, no reino do Daomé (atual Benin), das feitorias de Angola e de
Moçambique, mas sobretudo de Benguela, no sul angolano, cujos laços com o Rio
de Janeiro eram bem mais fortes do que com Lisboa.
Ligada as áreas africanas de tráfico, onde se situava o
segundo pulmão do país, a economia escravista brasileira estava sob ameaça
inglesa, em razão de tratados que obrigavam o governo português e o Brasil, a
cooperar com a Inglaterra na supressão do tráfico atlântico de africanos.
Reconhecimento da Independência do Brasil
Desde fevereiro de 1823,
Londres propôs o reconhecimento da independência do Brasil, se o país cessasse
o comércio atlântico de cativos africanos. Reiterada pelo governo britânico, a
proposta foi recusada pelo governo brasileiro. José Bonifácio de Andrada
justificou a recusa aos diplomatas ingleses: o embargo ‘precipitado’ à introdução
de africanos poria em perigo o governo do Rio e o Estado brasileiro.
Ora, o reconhecimento diplomático inglês era crucial para o Brasil. Representando seus próprios interesses, e os do governo lisboeta do rei João VI, de quem recebera o encargo de negociar com o governo do Rio de Janeiro, Londres tinha as cartas na mão para impor seus desígnios. Sede da potência hegemônica na Europa e nos oceanos, Londres aparecia ainda como a maior praça bancária do mundo.
Tal hegemonia se reflete no tratado luso-brasileiro de 1825, intermediado pela Inglaterra, no qual Portugal
reconheceu a independência do Brasil, e no tratado anglo-brasileiro de 1826, marcando o reconhecimento do Brasil pelo governo
inglês.
As cláusulas ratificadas pelo Brasil não deixam dúvidas sobre
sua submissão aos interesses ingleses e portugueses. Lisboa recebeu do governo
brasileiro 1,5 milhão de libras, de indenização
pela Independência. O montante, que corresponde a cerca de 151 milhões de dólares atuais, equivalia em 1810 ao preço de aproximadamente 300 000 vacas na Inglaterra. Desprovido de recursos, o
governo brasileiro contraiu um empréstimo de igual valor em Londres, no banco
Rothschild, para pagar a indenização. Garantido pelas receitas alfandegárias do
Rio de Janeiro, o empréstimo londrino comprometeu as finanças do Império, mas
também ajudou a manter a unidade nacional brasileira.
Caso as receitas alfandegárias do governo central fossem
amputadas pela independência de uma região brasileira, o pagamento da dívida
externa ficaria comprometido, prejudicando os banqueiros ingleses.
Nesse caso, o lema copiado do Império Romano, e imputado ao
império inglês, ‘dividir para reinar’, não era pertinente.
No tratado de 1826,
procurando obter prazos para terminar o tráfico de africanos, o governo
brasileiro concedeu privilégios tarifários à importação de produtos ingleses,
estendidos aos outros países que reconheceram o Império. Tais privilégios geraram
restrições orçamentárias, na medida em que o governo não queria, nem podia, por
razões políticas, aumentar os impostos de exportação da agricultura escravista.
No contencioso anglo-brasileiro sobre o comércio atlântico de
africanos, a administração régia do Rio de Janeiro teve um papel fundamental.
Beneficiando-se da tradição da diplomacia portuguesa, dos laços dinásticos que
o uniam à Europa, e do fato de ser a única monarquia das Américas, o governo
imperial pôde negociar, hesitar e manter — em trocas de concessões comerciais e
financeiras —, o comércio de africanos até 1850. Só
cedeu quando a Inglaterra reuniu no Atlântico Sul uma frota de guerra para
bloquear a Guanabara, gerando o estado de pré-beligerância entre os dois
países.
Fazendo um arrastão no comércio oceânico de africanos a
partir de 1808, o Brasil trouxe o contingente
humano escravizado que sustentaria sua riqueza e sua independência.
De Varnhagen a Oliveira Lima e a Sérgio Buarque de Holanda,
de Maria Odila Leite da Silva Dias a José Murilo de Carvalho e Evaldo Cabral de
Mello, há uma prestigiosa tradição historiográfica que destaca, muito
justamente, o papel da monarquia, da administração régia, e do polo mercantil
do Rio de Janeiro na consolidação do Estado brasileiro.
Maria Odila explicou como a ‘interiorização da metrópole’
posicionou o Rio de Janeiro no centro de um sistema administrativo e comercial,
que se estendia pela América Portuguesa. Porém, é preciso ainda enfatizar a
extensão extraterritorial da economia brasileira.
A vinda da Corte, ao lado da administração e dos negociantes lisboetas, transferiu também para o Rio de Janeiro as redes ultramarinas do comércio português. Houve, assim, também uma ‘interiorização do ultramar’ que intensificou a infame exploração escravocrata, e viabilizou, em última instância, a Independência e a unidade nacional brasileira. São lições do passado que ajudam a entender nosso presente.
Fonte: Luiz Felipe de Alencastro, professor da Escola de
Economia de São Paulo da FGV e professor emérito da Universidade Paris-Sorbonne
| Veja
(JA, Jan22)