Uma estátua a mais ou a menos não muda nada na vida de uma
cidade. No entanto, a discussão acerca de quais estátuas derrubar nos diz muito
sobre como nos vemos e como queremos ser.
As homenagens aos bandeirantes —como a estátua do Borba Gato,
incendiada no sábado (25) — estão por toda a parte em São
Paulo e em outros estados. Nesses casos, é comum defender figuras do passado
alegando que, em sua época, a moral era outra. Qual imperador romano não seria,
com razão, visto como um monstro pelos padrões de hoje? No caso dos
bandeirantes, contudo, a coisa é ainda mais complicada.
Os bandeirantes, também chamados de ‘mamelucos’ (pela mistura racial) ou simplesmente de ‘paulistas’, eram
malvistos por muitos em seu próprio tempo.
Verdadeiros demônios para os jesuítas e para os indígenas que
viviam em missões, considerados ‘gente bárbara, indômita e que vive do que
rouba’, segundo um governador de Pernambuco, falando do bando de Domingos Jorge
Velho, excomungados pela Igreja e de relacionamento difícil com a Coroa.
Eram o horror do mundo civilizado e da moral cristã. Em busca
de escravos e metais preciosos, capturaram e mataram muita gente.
Foram também eles que desbravaram matas e sertões, fundaram
cidades, ergueram igrejas e ajudaram a desbravar e conquistar o atual
território brasileiro. É graças a eles que não somos uma fina nação costeira, e
que nos estendemos muito além da linha de Tordesilhas. Bons ou maus, devemos
muito a esses homens que se lançavam na mata por meses, sem saber se iriam
voltar.
Os bandeirantes eram escravagistas, dentro de um mundo
escravagista, no qual a defesa da abolição universal era a exceção da exceção,
mesmo entre negros ou indígenas.
A própria categoria ‘indígena’ mais esconde do que revela,
assim como o nome ‘europeu’. Havia europeus que se odiavam e guerreavam até a
morte —como portugueses e holandeses aqui no Brasil, aliando-se a diferentes
grupos indígenas. Os bandeirantes, quando não mamelucos eles próprios, iam
acompanhados de milhares de indígenas aliados. Falavam mais língua geral do que
português. No caso de Borba Gato, chegou mesmo a viver entre os índios por
quase duas décadas.
Os grandes feitos da política, da guerra, da ciência ou da
inteligência, nem sempre —ou talvez quase nunca? — vêm acompanhados de perfeita
correção moral. A negação moralista da história, apaga tudo que não é clara e
inequivocamente bom. A mesma lógica se faz valer em vozes da direita que querem
apagar qualquer homenagem a Lênin, Che Guevara, Marx, os revolucionários
franceses etc., ou a insistência de alguns liberais em apagar homenagens a
Getúlio Vargas.
E se, ao invés de destruir, pensássemos em criar? Em
Montgomery, Alabama, uma solução criativa está sendo implementada. Próximo à
estátua de J. Marion Sims, pioneiro da cirurgia ginecológica, mas que realizou
procedimentos experimentais em escravas sem o uso de anestesia, serão erguidos
monumentos a três de suas vítimas cujos nomes foram registrados: Anarcha,
Betsey e Lucie. Quantas figuras admiráveis, como o ex-escravo e abolicionista
Luiz Gama, não permanecem esquecidos pela memória popular?
Erguer novas estátuas é mais importante do que derrubar velhas!
Considerações
¡ Os bandeirantes não eram ‘colonizadores’, eram nativos da terra que sequer falavam português, só a língua geral (derivada do tupi). Quase todos os caboclos, ou indígenas (como o Cacique Tibiriçá, líder bandeirante), que eram frequentemente reprimidos pelos portugueses, sendo um dos episódios mais dramáticos a Guerra dos Emboabas, em que a Coroa portuguesa destruiu os bandeirantes para se apossar das minas de ouro e diamantes descobertas por eles, e poder pagar suas dívidas com a Inglaterra.
¡ Os bandeirantes não eram ‘genocidas’, simplesmente para entrar no interior tinham que tomar parte nos confrontos sanguinários, e até mesmo canibais que existiam desde antes de 1500 entre tribos indígenas rivais. Não havia STF, ONU e Tribunal Internacional de Haia na época, os conflitos só podiam ser resolvidos na flecha e na bala.
¡ Os bandeirantes não estavam a serviço da Igreja Católica para catequizar indígenas; muito pelo contrário, eram quase todos pagãos, e entraram muitas vezes em choque contra os jesuítas, principalmente no sul, onde os jesuítas eram mais ligados à Espanha, ainda que no norte, onde eram mais ligados a Portugal, alguns jesuítas tenham aderido às bandeiras.
¡ Os bandeirantes não eram latifundiários, nem trabalhavam para senhores de engenho, pelo contrário, se fossem seriam sedentários e não se aventurariam pelo interior, ocupando-o com a policultura de subsistência.
¡ Domingos Jorge Velho de fato reprimiu o quilombo dos Palmares. Contudo, quem enfrentou e matou os quilombolas, muitos dos quais indígenas, foram os próprios indígenas bandeirantes. A maior parte da repressão ao quilombo do Palmares não foi do branco malvadão de olhos azuis, contra os pretos coitadinhos, mas índio matando índio, movidos por rivalidades tribais.
¡ Borba Gato não fazia parte das bandeiras de apresamento, mas de mineração. Foragido por matar um português, viveu décadas entre os índios, sendo por eles aclamado como líder.
¡ Os ‘paulistas’, como eram chamados os bandeirantes, não eram apenas os nascidos onde hoje é o estado de SP, pois a capitania de São Paulo, até o início do século 18, abarcava também onde hoje são MG, PR, GO, MT, MS, TO e RO. Todos os nascidos nessas regiões, de ocupação bandeirante, eram paulistas.
¡ O sertanejo nordestino é descendente dos bandeirantes, que ocupou o interior do nordeste com o tipo mameluco, predominante no planalto paulista da época. O matuto e o sertanejo vêm da mesma raiz bandeirante. Logo, não faz o menor sentido contrapor nordestino ao paulista.
¡ A primeira experiência de democracia representativa no Brasil foi a eleição para a câmara de Cuiabá, no século 18, uma cidade bandeirante.
¡ Quem nacionalizou a imagem positiva
dos bandeirantes não foi a oligarquia paulista, mas Getúlio Vargas, o maior
inimigo dela. Ele exaltava os bandeirantes em discursos, panfletos, e nos
currículos escolares, além de ter criado o Museu das Bandeiras.
A oligarquia paulista, ao contrário, sempre desdenhou dos bandeirantes, homens rudes e voltados para dentro do país, indiferentes, e até mesmo hostis aos modismos estrangeiros (quando ajudaram a expulsar holandeses e ingleses do Brasil) tão ao gosto da oligarquia paulista. A mídia liberal paulista, inclusive, é uma das que mais se empenham hoje em desconstruir a memória bandeirantista.
Fonte: Joel Pinheiro da Fonseca, FSP | Felipe Quintas, Um Pouco de História
(JA, Jul21)