Ele chegou ao Brasil em 1808 e ficou 13 anos na ex-colônia que, nessa temporada, promoveria a Reino Unido de Portugal
1. Vinda para o Brasil
João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António
Domingos Rafael de Bragança, o dom João 6º,
tinha as tropas napoleônicas em seus calcanhares quando decidiu se mudar para o
Brasil.
Chegou em 1808 e ficou 13 anos na ex-colônia que, durante essa temporada, promoveria a
Reino Unido de Portugal.
Esta segunda-feira (26)
marca o bicentenário de sua partida do território que um ano depois, sob rédea
de seu filho dom Pedro 1º e com sua complacência, declararia
independência da coroa portuguesa.
Se o imaginário popular guardou a imagem de um glutão que
escondia pedaços de frango no bolso e tinha pavor a banho, a passagem de dom
João pelo Rio de Janeiro alavancou um projeto ainda imberbe de nação e, de
quebra, deu um banho de loja na nova sede da corte real.
Vêm do que historiadores chamam de período joanino
instituições até hoje centrais no país, como a Polícia Militar e o Banco do
Brasil.
O primeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de
Janeiro, também é obra de dom João, que instituiu a Imprensa Régia no ano em
que se mudou para as Américas. Dom João leva crédito até por popularizar o
carioquíssimo hábito de ir à praia.
‘Embora tenha sido retratado por historiadores
antimonarquistas do início do século 20
como uma figura grotesca, dom João é hoje considerado o mentor do Estado
brasileiro’, diz a historiadora Mary Del Priore, com farta obra sobre o passado
nacional. ‘Além de ter enganado Napoleão com sua partida abrupta, ele elevou o
Brasil a Reino Unido, e era considerado hábil político’.
Não que o monarca não tivesse seu lado pitoresco. Conta-se
que tamanho era seu pavor de trovões que João se enrolava nas cortinas do
palácio para não ouvir o estrondo, lembra Del Priore. Também tinha ‘apetite
pantagruélico’: devorava até 12 pratos diferentes
a cada refeição. Os acompanhamentos obrigatórios eram frutas, queijos, doce e
pães.
Filho zeloso, João levava dona Maria 1ª para passear na sua fazenda Santa Cruz, onde saboreavam
mangas juntos. ‘Quando a rainha morreu, ele se desolou e passou três dias sem
se alimentar, em total desespero e saudade’, afirma a historiadora. Passou de
príncipe regente a rei depois disso.
Na mesma granja, um carrapato picou a perna de João. A ferida
infeccionou, e o paciente seguiu uma recomendação médica então comum: sanar
feridas com o iodo marinho do mar. Passou a tomar banhos de mar, o que ainda
não era costume dos cariocas.
Para o tratamento, enfiava-se numa caixa de madeira
perfurada, molhando só partes do corpo. Ele esperava assim evitar o ataque de
crustáceos nas águas da praia do Caju, próxima à Quinta da Boa Vista, a
residência real.
A praia sumiu com a construção da ponte Rio-Niterói. Já a
Quinta, erguida em 1803 por um traficante de negros
escravizados, e doada para a família imperial em 1808, existe até hoje. Quem quase desapareceu foi o Museu Nacional, abrigado
no terreno, e parcialmente destruído num incêndio 200 anos após ser fundado pelo rei João.
Com a corte vieram as peculiaridades de dom João, mas também
o aparelho de um Estado soberano: a alta hierarquia civil, religiosa e militar,
aristocratas e profissionais liberais, artesãos qualificados, servidores
públicos.
A capital ganhou a Biblioteca Real, a Academia Real de Belas
Artes, a Imprensa Real e a Academia Militar. A abertura dos portos para nações
amigas de Portugal, em 1808, encerrou a relação comercial
exclusiva com a metrópole e dinamizou a economia local.
A cidade teve também um upgrade de estradas, iluminação
pública e uma administração pública mais estruturada que, segundo Del Priore, ‘incorporou
muitos brasileiros, inclusive afro-brasileiros e afro-mestiços’.
‘A transferência da corte mudou a maneira como as pessoas dos
dois lados do Atlântico entendiam a situação do Brasil, que deixou de ser uma
colônia’, afirma a historiadora Kirsten Schultz, que no livro ‘Versalhes
Tropical’ se debruça sobre a vinda do clã real para os trópicos. ‘Afinal, um
rei não poderia viver em uma colônia porque era um território de status
inferior’.
Antes de 1808, a capital
tinha ruas apertadas e casas simples, a maioria sem calçamento. Nada digno de
uma monarquia. Ao aportar no Rio, o regente foi recebido com ruas cobertas de
areia, ervas e flores, conforme narrou o cônego imperial Luiz Gonçalves dos
Santos, o Perereca, padre-cronista daqueles tempos.
A cidade estava em festa. Sinos badalaram nas igrejas, fogos
de artifício coloriram o céu e um coreto entoou ‘melodiosas vozes instrumentais
como vocais’, segundo Perereca.
Com dom João no pedaço, o Rio provou do ‘lifestyle’
cosmopolita. Para abrigar os milhares de recém-chegados numa cidade de 60 mil habitantes, um tanto de gente acabou desalojada
—incluindo parte da elite que vivia em suntuosas chácaras. O despejo por ordem
real foi batizado de ‘aposentadoria’.
O desembarque daquele homem baixo, com papadas e um ventre
esférico, com coxas roliças que desgastavam o calção de seda, empurrou o Brasil
para uma modernidade inédita. O Rio pré-dom João foi para o brejo: a nova
administração aterrou pântanos e abriu ruas mais largas e planejadas.
Apreciador de óperas, o regente ordenou a construção do
Teatro Real de São João (atual
João Caetano).
Inaugurada em 1813, a casa abrigou ‘Don Giovanni’,
ópera de Mozart encenada pouco após sua estreia, em Viena.
Embrião da PM, a Polícia da
Corte foi fundada em 1809. Os 218 oficiais da primeira levam substituíram quadrilheiros, homens que faziam
a patrulha local munidos de lanças e bastões.
Schultz aponta que o policiamento foi concebido para, em
parte, punir escravizados. ‘As preocupações do primeiro intendente de polícia com
o que ele chamou de civilização e segurança pública também levaram a ações
repressivas contra os negros livres, incluindo trabalho forçado. A presença da
corte desafiou a ideia de que o Brasil era uma colônia de Portugal, mas
reafirmou o colonialismo gerado pelo domínio português."
Dom João dava todos os sinais de que veio para ficar de vez. ‘Isso
contribuiu para criar na Europa a impressão de que pessoas da maior estatura,
como uma das dinastias reinantes, podiam viver com certo conforto nos trópicos’,
diz a historiadora Isabel Lustosa, do Centro de Humanidades da Universidade
Nova de Lisboa e autora de livros sobre o período joanino.
‘Tudo isto elevou a moral dos brasileiros e lhes deu força
para resistir às tentativas de retrocesso que se seguiram à partida do rei’. O
regente pródigo a Portugal voltou, ainda que a contragosto, pressionado pelos
conterrâneos, que atravessavam a liberal Revolução do Porto.
Em 1822, vingou o clamor nacional: independência ou morte.
Cronologia da família real portuguesa no Brasil
¡ 1808
Com Lisboa cercada por tropas
napoleônicas, dom João 6º se muda para o Brasil, decreta abertura dos portos
para nações amigas e funda instituições como o Banco do Brasil e a Imprensa
Régia, que publica primeiro jornal impresso nacionalmente, a Gazeta do Rio de
Janeiro
¡ 1809
Criação da Polícia da Corte,
originária da Guarda Real trazida da metrópole e embrião da Polícia Militar do
Rio de Janeiro
¡ 1810
Decreto cria a Academia Real Militar;
dela se originou a Academia Militar das Agulhas Negras, onde se formou o
presidente Jair Bolsonaro
¡ 1811
Criação da Junta da Instituição
Vacínica da Corte, que tinha como meta disseminar a imunização contra varíola
no país
¡ 1813
Inauguração do Real Theatro de São
João, que trouxe à corte obras de Mozart e outros grandes artistas europeus;
hoje se chama Teatro João Caetano
¡ 1815
Príncipe regente integra ex-colônia a
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
¡ 1816
Morre dona Maria 1ª, mãe de dom João, que passará de príncipe regente a rei
¡ 1818
Abertura do Museu Nacional, que no
princípio abrigava de animais empalhados a material botânico; espaço foi
devastado por incêndio em seu bicentenário
¡ 1821
Pressionado pela Revolução do Porto, dom João regressa a Portugal e deixa filho dom Pedro, que vai declarar a independência do Brasil no ano seguinte.
2. Retorno a Portugal
Retratada pelo pintor francês Jean Baptiste Debret, esta cena
importantíssima na história do Brasil foi o último ato da corte portuguesa de
dom João 6º no Rio de Janeiro. Há exatos
duzentos anos, em 26 de abril de 1821, o rei de Portugal e do Brasil embarcava de volta
para Lisboa.
Na viagem de retorno a Portugal, a comitiva de dom João incluía
cerca de 4000 pessoas – um terço do total que o
havia acompanhado na fuga para o Rio de Janeiro, treze anos antes. Conta-se que
o rei embarcou chorando de emoção. Se dependesse apenas de sua vontade, ficaria
no Brasil para sempre.
Nenhum outro período da história brasileira testemunhou
mudanças tão profundas, decisivas e aceleradas quanto esses treze anos de
permanência da corte no Rio de Janeiro. Em apenas uma década e meia, o Brasil
deixou de ser uma colônia fechada e atrasada para se tornar um país
independente.
As adversidades começaram já no desembarque em Lisboa, em 4 de julho de 1821, quando as
Cortes –que haviam assumido o poder na revolução liberal do ano anterior–
fizeram questão de reforçar o rebaixamento da autoridade real.
Embora seu navio tenha chegado à capital no dia anterior, e o
próprio rei tivesse manifestado o desejo de desembarcar horas depois, as Cortes
deliberadamente ignoraram o pedido.
Mantido incomunicável na embarcação, d. João 6º só foi autorizado a sair no momento escolhido pelas Cortes.
Além disso, viu parte de seus acompanhantes e indicações ministeriais vetadas
de antemão.
As próprias cerimônias que marcaram o retorno da família real
foram planejadas pelos liberais como uma forma de mostrar a nova condição da
monarquia.
A população foi em peso para as ruas, mas, por determinação
das Cortes, a cidade e as casas não foram adornadas com arcos triunfais, como
normalmente aconteceria nessas ocasiões.
‘O sentimento generalizado seria o de que se acolhia não um
soberano vitorioso, mas um rei derrotado, indigno de arcos triunfais’, nas
palavras do historiador Valentim Alexandre ao jornal Público.
Sem poder de barganha ou margem negocial, restou a d. João 6º aceitar as determinações e jurar a constituição liberal.
Com poderes limitados e sem conseguir indicar seus próprios
ministros, d. João 6º veria a sua situação começar a mudar em 27 de maio de 1823, quando d.
Miguel, com o apoio de parte do Exército, organizou uma rebelião contra o
governo liberal.
Após demonstrar alguma hesitação. D. João 6º acabou aderindo ao movimento, assumindo o comando da
situação e controlando a ascensão ao poder de d. Miguel, que acabou nomeado
para o comando do Exército.
O episódio, conhecido como vila-francada, marcou o fim do
período liberal iniciado na revolução e reestabeleceu o poder a d. João 6º.
Mesmo com a decisão do monarca de anular a Constituição,
libertar presos políticos, e cancelar as sentenças contra a rainha Carlota
Joaquina (que havia sido
punida por se recusar a jurar as leis liberais), o partido absolutista não se mostrava satisfeito com
as medidas, consideradas excessivamente moderadas.
‘Tudo isso desagradava a d. Carlota Joaquina e a d. Miguel, que aspiravam ao restabelecimento da monarquia absoluta’, escreve a historiadora portuguesa Maria Cândida Proença.
D. João 6º sofre então uma
nova tentativa de golpe, realizado pelo próprio d. Miguel. Em 30 de abril de 1824, com apoio do
Exército, o príncipe investiu contra o pai, que acabou cercado por tropas
miguelistas no Palácio da Bemposta, em Lisboa.
O rei só não caiu por interferência de diplomatas
estrangeiros, sobretudo os embaixadores da França e da Inglaterra, que
asseguraram a d. João 6º o apoio das potências europeias.
Com o auxílio inglês, o monarca se refugiou em uma nau
britânica ancorada no Tejo e conseguiu retomar o controle da situação. D.
Miguel acabou demitido do comando do Exército e enviado para o exílio em Viena,
na Áustria.
Fragilizado pela instabilidade doméstica e sem apoio
internacional para tentar reintegrar o Brasil ao reino, Portugal, sob o comando
de d. João 6º, acaba reconhecendo a independência
do Brasil em agosto de 1825, em um acordo mediado pelos
ingleses.
O rei morreria poucos meses depois –há fortes indícios de que
ele teria sido envenenado–, em 10 de março de 1826, aos 58 anos, deixando
um grande problema de sucessão.
Com o filho mais velho no comando de uma ex-colônia que se
declarara independente, e o mais novo exilado por tramar um golpe de estado,
quem era o herdeiro legítimo?
A disputa entre os irmãos, que se prolongou pelos anos subsequentes, mergulhou Portugal em uma guerra civil.
Fonte: Anna Virginia Balloussier (1), Giuliana Miranda (2) - FSP | Laurentino Gomes
(JA, Abr21)