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Zuza Homem de Mello

 Com escuta sensível e vasto repertório cultural, pesquisador captava e traduzia toda sua complexidade

 

Zuza Homem de Mello, 1933-2020, em seu apartamento, 2019 

Partiu para outro plano, aqui na cidade de São Paulo, no último dia 4, um grande paulistano, uma figura ímpar que, na sua área de atuação, fez a diferença. Era um digno representante de uma figura que está cada vez mais rara no jornalismo da área de cultura – o crítico de arte.

Trata-se de Zuza Homem de Mello, que desencarnou aos 87 anos, fechando assim um ciclo glorioso e de um legado brilhante, e fica no coração e na memória afetiva de vários músicos, cantores, compositores, e gente que trabalhou ao seu lado, como uma referência em suas vidas.

O simpático Zuza, era de uma geração e de um tempo em que quando se abriam os cadernos de cultura dos principais do jornais do país, havia a figura dos críticos de arte, que balizavam com profundidade teórica as principais obras de arte, seja na música, na literatura, no cinema ou no teatro, norteando o público não apenas a ir assistir ou ouvir um determinado produto artístico porque determinado artista estará lá,  mas pelo valor da obra em si.

Assim como com Mário de Andrade e Antonio Cândido poderíamos não apenas nos motivar a ler uma determinada de um autor x, mas nos ensinavam a como ler, e a como apreciar aquela obra; o mesmo valia para Décio de Almeida Prado, no Teatro, Rubens Ewald Filho e Paulo Emílio, ambos no cinema. Cada crítica era verdadeira aula de desenvolvimento de sensibilidade artística ao leitor, muito diferente dos tempos atuais, quando os pseudo críticos apenas adjetivam seus textos, emitem juízo de valor de uma determinada obra - ou porque são amigos do artista ou não, ou porque há outros interesses no meio. Zuza Homem de Mello era da linhagem mais antiga.

Para virar a referência que virou no mundo da música, nada caiu do céu. Talvez uma única exceção atualmente seja o ótimo crítico de música, o jornalista Júlio Maria, do Estadão.

Nascido no dia 20 de setembro de 1933 na cidade de São Paulo, José Eduardo Homem de Mello atuou como baixista na noite até que, em 1955, abandonou o curso de engenharia, que planejava seguir, para se dedicar à música. No ano seguinte, iniciou-se no jornalismo, assinando colunas sobre música para os jornais Folha da Noite e Folha da Manhã.

Em 1957, foi estudar música na School of Jazz, em Tanglewood, nos Estados Unidos, onde teve aulas com Ray Brown e outros músicos. Entre 1957 e 1958, estudou musicologia na Juilliard School of Music, de Nova York.

De volta ao Brasil, em 1959, Zuza voltou ao Brasil, em um tempo em que a televisão, ainda novidade no Brasil, buscava uma nova linguagem, e nesse processo houve um casamento muito feliz entre a televisão e a música. Zuza pegou uma das fases mais férteis e criativas da música ao ingressar na TV Record, onde permaneceu por cerca de dez anos, trabalhando como engenheiro de som nos programas de MPB e festivais, além de atuar como booker na contratação de astros internacionais.

 

Entre 1977 e 1988, Zuza concentrou suas atividades no rádio e na imprensa, produzindo e apresentando programas, e fazendo crítica de música popular para o jornal O Estado de S. Paulo, além de outras publicações no Brasil e no exterior.

Com uma larga experiência como produtor e diretor musical, Zuza dirigiu nos anos 70 a série de shows ‘O Fino da Música’, no Anhembi, na zona norte de São Paulo, que apresentava nomes conhecidos como o conjunto regional do Canhoto, Elis Regina, Elizeth Cardoso, e outros, que ainda despontavam, como João Bosco, Ivan Lins e Alcione,... 

Nos anos 80, dirigiu os três Festivais de Verão do Guarujá, reunindo os veteranos Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, Jorge Ben Jor, Raul Seixas  e os ainda novatos Djavan, Beto Guedes e Alceu Valença.

Mais tarde, produziu a tournée de Milton Nascimento ao Japão, 1988; dirigiu Milton e Gilberto Gil,  na série de concertos Basf Chrome Music, 1989.

Nos anos 90, assumiu a direção geral das três edições do Festival Carrefour, que revelou nomes como Chico César, Lenine, Sergio Santos e Zélia Duncan. Ainda na década de 90, dirigiu no Sesc, os shows Ramalhete de Melodias, Lupicínio às Pampas, Raros e Inéditos, a série Ouvindo Estrelas (durante dois anos), os dez espetáculos Aberto para Balanço, comemorativos dos cinquenta anos da entidade, e o concerto comemorativo dos cem anos de nascimento de George Gershwil.

Na televisão, apresentou a série Jazz Brasil na TV Cultura, e na área fonográfica produziu discos de Jacob do Bandolim, Orlando Silva, Fafá Lemos, Carolina Cardoso de Meneses e Elis Regina, atuando na seleção de repertório do CD Canções Paulistas com os Trovadores Urbanos transformado, em 2007, num DVD do espetáculo.

Foi diretor musical do Baretto entre 2001 e 2004. Em 2005 produziu as vinhetas da rádio BandNews Fm no ano seguinte da BandNews TV.

Em 2006 foi curador dos shows de MPB no Café Filosófico, da CPFL em Campinas sendo coordenador dessa programação a partir do ano seguinte.

Jornalista convidado para os mais importantes festivais mundiais de música Montreaux, Edimburgo, Nova York, New Orleans, Barbados, Paris, Midem de Cannes, Tóquio, Montreal e Perugia.

Zuza integrou a equipe dos dois Festivais de Jazz de São Paulo, 1978 e 80, e foi curador do elenco do Free Jazz Festival, desde sua primeira edição, em 1985, e depois do seu sucessor, Tim Festival. Foi membro e ex-presidente da Associação dos Pesquisadores da MPB.

Em 2018 foi eleito para ocupar a cadeira n.º 17 da Academia Paulista de Letras substituindo o professor de Literatura portuguesa, Massaud Moisés.

Em 1997, Zuza coordenou a Enciclopédia da Música Brasileira. Nos anos 2000, produziu uma ótima coleção biográfica sobre os bastidores dos Festivais de Música da TV Record, e seguia trabalhando muito, sempre antenado nas novidades, principalmente no que tange aquilo que definia como músicas com potencial de virarem clássicos, transitando assim mais na crítica de música de qualidade harmônica, artística, dando palestras pelo Brasil e no exterior, enaltecendo a nossa tradição musical, e participando de programas nas mais diversas emissoras de rádio e TV como entrevistado.

Antes de vir  falecer produziu a biografia do cantor e compositor icônico João Gilberto que, em breve, deverá ser lançada, agora como a última obra e o último legado de Zuza para o mundo da música e da cultura brasileira.

Essa era a única preocupação de Zuza - deixar seu imenso conhecimento, adquirido ao longo das eras, para as futuras gerações.

Assim, ao desencarnar tranquilamente dormindo, vítima de infarto, Zuza partiu deixando um legado glorioso para que novos talentos não deixem morrer algo que faz tanta falta no jornalismo cultural da imprensa  - críticos, sejam de música, teatro, cinema, dança, televisão.  Vá em paz Zuza .

 

 

Encontrei ‘A Era dos Festivais - Uma Parábola’, de Zuza Homem de Mello, logo depois de me formar na faculdade. Fiquei deslumbrado com a riqueza de informações, os detalhes pesquisados com a minúcia de um apaixonado, a organização impecável.

Mais: o livro era encantadoramente bem escrito, charmoso e elegante. Mais ainda: Zuza tinha um ouvido treinado, e aliava essa percepção elevada a um texto claro, em que traduzia as ideias musicais mais elaboradas de um modo muito objetivo. Revelava as canções por dentro. Traduzia. E seduzia.

Eu concluí minha faculdade com uma monografia sobre os festivais. Era um jovem deslumbrado pela música brasileira. ‘A Era dos Festivais - Uma Parábola’, mudou a minha vida. Aquele apuro, e aquela paixão, impressas no livro me fizeram seguir adiante com a ideia de realizar um documentário.

Quando , ‘Uma Noite em 67’, começou a nascer, convidamos Zuza para ser consultor. Eu e Ricardo Calil, que dirigiu o filme comigo, mandávamos todas as pautas das entrevistas para ele. Era nosso porto seguro de conhecimento e nossa referência maior.

Zuza foi técnico de som no festival de 1967 e, ao longo dos anos, se tornou a maior autoridade no assunto. Deu um longuíssimo depoimento para o filme.

Num determinado momento, perguntamos: ‘Você viu o festival de 67 por aquela televisãozinha na cabine de som. Era possível saber que você estava presenciando um momento histórico?’

E ele respondeu: ‘Bom, eu sempre percebi, de uma maneira muito nítida, que era um momento histórico. Eu só não percebi os momentos históricos quando eu não estava presente, evidentemente. O primeiro 'Fino da Bossa', para mim, foi um momento histórico. De tal forma que eu preservei a fita de som - eu não a apaguei. E muitas outras ocasiões. Claro que você não pode prever todos os detalhes, mas você tem a sensação de algo no ar, que em outros casos não existe. Isso dá pra perceber, e é fundamental para quem, acho eu, para quem se dedica ao que eu me dedico. Se você não tiver essa percepção, você deixa escapar pelos dedos tudo o que você poderia ter visto, poderia ter registrado, ou poderia guardar. Você tem que ter essa percepção, isso é insubstituível, e não tem receita para isso’.

Sem Zuza, não teríamos conseguido entrevistar Roberto Carlos e Paulinho Machado de Carvalho. Zuza era querido e respeitado por eles, assim como era por grande parte das pessoas que ouvem ou produzem música.

Uma canção não é somente uma sucessão de notas acompanhada por uma letra. A música brasileira traduz e amplifica nossos traumas coletivos, nossa diferença de classes, as pequenas e grandes alegrias, nossos anseios, nosso espírito, nossa história.

Zuza Homem de Mello, com sua escuta sensível, e vasto repertório cultural, captava e traduzia toda sua complexidade: uma mudança de tom, uma citação, um arranjo criativo, uma inovação. O público precisa de um Zuza Homem de Mello para ampliar não só o conhecimento, mas toda essa sensibilidade. 

Lembro de quando li ‘João Gilberto’, da coleção ‘Folha Explica’, escrito pelo Zuza. Toda a complexidade de João estava ali traduzida, como um canto de sereia. Limpo, claro, sedutor. Ler e ouvir Zuza Homem de Mello transformou profundamente minha relação com a música. Não é exagero dizer que ele mudou a minha vida.

Pelo ouvido sensível. Pela escrita precisa, capaz de tornar a complexidade da música atraente aos leigos. Pela curiosidade. Pela curadoria de festivais, pelo faro jornalístico. Pela capacidade de compartilhar sua paixão infinita pela música com as novas gerações. Por tudo isso, a cultura brasileira deve muito a Zuza Homem de Mello.

Semana passada, busquei na estante mais uma vez o meu exemplar surrado, marcado e anotado de ‘A Era dos Festivais - Uma Parábola’.

Zuza havia aceitado participar do Conversa com Bial, onde trabalho como roteirista. Sua entrevista estava marcada para o próximo dia 15. Estou com o livro ao meu lado nesse momento enquanto termino este texto.




Fonte: Renato Terra  |  FSP

 

(JA, Out20)

 



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