Com escuta sensível e vasto repertório cultural, pesquisador captava e traduzia toda sua complexidade
Partiu para outro plano, aqui na
cidade de São Paulo, no último dia 4, um
grande paulistano, uma figura ímpar que, na sua área de atuação, fez a
diferença. Era um digno representante de uma figura que está cada vez mais rara
no jornalismo da área de cultura – o crítico de arte.
Trata-se de Zuza Homem de Mello, que
desencarnou aos 87 anos, fechando assim um ciclo
glorioso e de um legado brilhante, e fica no coração e na memória afetiva de
vários músicos, cantores, compositores, e gente que trabalhou ao seu lado, como
uma referência em suas vidas.
O simpático Zuza, era de uma geração
e de um tempo em que quando se abriam os cadernos de cultura dos principais do
jornais do país, havia a figura dos críticos de arte, que balizavam com
profundidade teórica as principais obras de arte, seja na música, na
literatura, no cinema ou no teatro, norteando o público não apenas a ir
assistir ou ouvir um determinado produto artístico porque determinado artista
estará lá, mas pelo valor da obra em si.
Assim como com Mário de Andrade e
Antonio Cândido poderíamos não apenas nos motivar a ler uma determinada de um
autor x, mas nos ensinavam a como ler, e a como apreciar aquela obra; o mesmo
valia para Décio de Almeida Prado, no Teatro, Rubens Ewald Filho e Paulo
Emílio, ambos no cinema. Cada crítica era verdadeira aula de desenvolvimento de
sensibilidade artística ao leitor, muito diferente dos tempos atuais, quando os
pseudo críticos apenas adjetivam seus textos, emitem juízo de valor de uma
determinada obra - ou porque são amigos do artista ou não, ou porque há outros
interesses no meio. Zuza Homem de Mello era da linhagem mais antiga.
Para virar a referência que virou no
mundo da música, nada caiu do céu. Talvez uma única exceção atualmente seja o
ótimo crítico de música, o jornalista Júlio Maria, do Estadão.
Nascido no dia 20 de setembro de 1933
na cidade de São Paulo, José Eduardo Homem de Mello atuou como baixista na
noite até que, em 1955, abandonou o curso de engenharia,
que planejava seguir, para se dedicar à música. No ano seguinte, iniciou-se no
jornalismo, assinando colunas sobre música para os jornais Folha da Noite e
Folha da Manhã.
Em 1957, foi estudar música na School of Jazz, em Tanglewood, nos Estados
Unidos, onde teve aulas com Ray Brown e outros músicos. Entre 1957 e 1958, estudou musicologia
na Juilliard School of Music, de Nova York.
De volta ao Brasil, em 1959, Zuza voltou ao Brasil, em um tempo em que a
televisão, ainda novidade no Brasil, buscava uma nova linguagem, e nesse
processo houve um casamento muito feliz entre a televisão e a música. Zuza
pegou uma das fases mais férteis e criativas da música ao ingressar na TV Record, onde permaneceu por cerca de dez anos, trabalhando
como engenheiro de som nos programas de MPB e
festivais, além de atuar como booker na contratação de astros internacionais.
Entre 1977 e 1988, Zuza concentrou suas atividades no rádio e na imprensa, produzindo e apresentando programas, e fazendo crítica de música popular para o jornal O Estado de S. Paulo, além de outras publicações no Brasil e no exterior.
Com uma larga experiência como
produtor e diretor musical, Zuza dirigiu nos anos 70 a série de shows ‘O Fino da Música’, no Anhembi, na zona
norte de São Paulo, que apresentava nomes conhecidos como o conjunto regional
do Canhoto, Elis Regina, Elizeth Cardoso, e outros, que ainda despontavam, como
João Bosco, Ivan Lins e Alcione,...
Nos anos 80, dirigiu os três Festivais de Verão do Guarujá, reunindo os
veteranos Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, Jorge Ben Jor,
Raul Seixas e os ainda novatos Djavan,
Beto Guedes e Alceu Valença.
Mais tarde, produziu a tournée de
Milton Nascimento ao Japão, 1988; dirigiu
Milton e Gilberto Gil, na série de
concertos Basf Chrome Music, 1989.
Nos anos 90, assumiu a direção geral das três edições do Festival
Carrefour, que revelou nomes como Chico César, Lenine, Sergio Santos e Zélia
Duncan. Ainda na década de 90, dirigiu no
Sesc, os shows Ramalhete de Melodias, Lupicínio às Pampas, Raros e Inéditos, a
série Ouvindo Estrelas (durante
dois anos), os dez
espetáculos Aberto para Balanço, comemorativos dos cinquenta anos da entidade,
e o concerto comemorativo dos cem anos de nascimento de George Gershwil.
Na televisão, apresentou a série Jazz
Brasil na TV Cultura, e na área fonográfica
produziu discos de Jacob do Bandolim, Orlando Silva, Fafá Lemos, Carolina
Cardoso de Meneses e Elis Regina, atuando na seleção de repertório do CD Canções Paulistas com os Trovadores Urbanos transformado, em
2007, num DVD do espetáculo.
Foi diretor musical do Baretto entre 2001 e 2004. Em 2005 produziu as vinhetas da rádio BandNews Fm no ano
seguinte da BandNews TV.
Em 2006 foi curador dos shows de MPB no
Café Filosófico, da CPFL em Campinas sendo coordenador dessa
programação a partir do ano seguinte.
Jornalista convidado para os mais
importantes festivais mundiais de música Montreaux, Edimburgo, Nova York, New
Orleans, Barbados, Paris, Midem de Cannes, Tóquio, Montreal e Perugia.
Zuza integrou a equipe dos dois
Festivais de Jazz de São Paulo, 1978 e
80, e foi curador do elenco do Free Jazz
Festival, desde sua primeira edição, em 1985, e
depois do seu sucessor, Tim Festival. Foi membro e ex-presidente da Associação
dos Pesquisadores da MPB.
Em 2018 foi eleito para ocupar a cadeira n.º 17 da
Academia Paulista de Letras substituindo o professor de Literatura portuguesa,
Massaud Moisés.
Em 1997, Zuza coordenou a Enciclopédia da Música Brasileira. Nos anos 2000, produziu uma ótima coleção biográfica sobre os
bastidores dos Festivais de Música da TV
Record, e seguia trabalhando muito, sempre antenado nas novidades,
principalmente no que tange aquilo que definia como músicas com potencial de
virarem clássicos, transitando assim mais na crítica de música de qualidade
harmônica, artística, dando palestras pelo Brasil e no exterior, enaltecendo a
nossa tradição musical, e participando de programas nas mais diversas emissoras
de rádio e TV como entrevistado.
Antes de vir falecer produziu a biografia do cantor e compositor
icônico João Gilberto que, em breve, deverá ser lançada, agora como a última
obra e o último legado de Zuza para o mundo da música e da cultura brasileira.
Essa era a única preocupação de Zuza
- deixar seu imenso conhecimento, adquirido ao longo das eras, para as futuras
gerações.
Assim, ao desencarnar tranquilamente dormindo, vítima de infarto, Zuza partiu deixando um legado glorioso para que novos talentos não deixem morrer algo que faz tanta falta no jornalismo cultural da imprensa - críticos, sejam de música, teatro, cinema, dança, televisão. Vá em paz Zuza .
Encontrei ‘A Era dos Festivais - Uma
Parábola’, de Zuza Homem de Mello, logo depois de me formar na faculdade.
Fiquei deslumbrado com a riqueza de informações, os detalhes pesquisados com a
minúcia de um apaixonado, a organização impecável.
Mais: o livro era encantadoramente
bem escrito, charmoso e elegante. Mais ainda: Zuza tinha um ouvido treinado, e
aliava essa percepção elevada a um texto claro, em que traduzia as ideias
musicais mais elaboradas de um modo muito objetivo. Revelava as canções por
dentro. Traduzia. E seduzia.
Eu concluí minha faculdade com uma
monografia sobre os festivais. Era um jovem deslumbrado pela música brasileira.
‘A Era dos Festivais - Uma Parábola’, mudou a minha vida. Aquele apuro, e
aquela paixão, impressas no livro me fizeram seguir adiante com a ideia de
realizar um documentário.
Quando , ‘Uma Noite em 67’, começou a nascer, convidamos Zuza para ser consultor. Eu e
Ricardo Calil, que dirigiu o filme comigo, mandávamos todas as pautas das
entrevistas para ele. Era nosso porto seguro de conhecimento e nossa referência
maior.
Zuza foi técnico de som no festival
de 1967 e, ao longo dos anos, se tornou a
maior autoridade no assunto. Deu um longuíssimo depoimento para o filme.
Num determinado momento, perguntamos:
‘Você viu o festival de 67 por aquela televisãozinha na cabine
de som. Era possível saber que você estava presenciando um momento histórico?’
E ele respondeu: ‘Bom, eu sempre
percebi, de uma maneira muito nítida, que era um momento histórico. Eu só não
percebi os momentos históricos quando eu não estava presente, evidentemente. O
primeiro 'Fino da Bossa', para mim, foi um momento histórico. De tal forma que
eu preservei a fita de som - eu não a apaguei. E muitas outras ocasiões. Claro
que você não pode prever todos os detalhes, mas você tem a sensação de algo no
ar, que em outros casos não existe. Isso dá pra perceber, e é fundamental para
quem, acho eu, para quem se dedica ao que eu me dedico. Se você não tiver essa
percepção, você deixa escapar pelos dedos tudo o que você poderia ter visto,
poderia ter registrado, ou poderia guardar. Você tem que ter essa percepção,
isso é insubstituível, e não tem receita para isso’.
Sem Zuza, não teríamos conseguido entrevistar
Roberto Carlos e Paulinho Machado de Carvalho. Zuza era querido e respeitado
por eles, assim como era por grande parte das pessoas que ouvem ou produzem
música.
Uma canção não é somente uma sucessão
de notas acompanhada por uma letra. A música brasileira traduz e amplifica
nossos traumas coletivos, nossa diferença de classes, as pequenas e grandes
alegrias, nossos anseios, nosso espírito, nossa história.
Zuza Homem de Mello, com sua escuta sensível, e vasto repertório cultural, captava e traduzia toda sua complexidade: uma mudança de tom, uma citação, um arranjo criativo, uma inovação. O público precisa de um Zuza Homem de Mello para ampliar não só o conhecimento, mas toda essa sensibilidade.
Lembro de quando li ‘João Gilberto’, da coleção ‘Folha Explica’, escrito pelo Zuza. Toda a complexidade de João estava ali traduzida, como um canto de sereia. Limpo, claro, sedutor. Ler e ouvir Zuza Homem de Mello transformou profundamente minha relação com a música. Não é exagero dizer que ele mudou a minha vida.
Pelo ouvido sensível. Pela escrita
precisa, capaz de tornar a complexidade da música atraente aos leigos. Pela
curiosidade. Pela curadoria de festivais, pelo faro jornalístico. Pela
capacidade de compartilhar sua paixão infinita pela música com as novas
gerações. Por tudo isso, a cultura brasileira deve muito a Zuza Homem de Mello.
Semana passada, busquei na estante
mais uma vez o meu exemplar surrado, marcado e anotado de ‘A Era dos Festivais
- Uma Parábola’.
Zuza havia aceitado participar do Conversa com Bial, onde trabalho como roteirista. Sua entrevista estava marcada para o próximo dia 15. Estou com o livro ao meu lado nesse momento enquanto termino este texto.
Fonte: Renato Terra | FSP
(JA, Out20)