Como vencer uma pandemia
O livro ‘A Peste’, do franco-argelino Albert Camus, 1913-1960, voltou a estampar a lista dos mais vendidos, desde o início do ano, no contexto da pandemia do novo coronavírus. Em 1957, o escritor foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, dez anos após a publicação do romance. A principal característica da sua obra é narrar a experiência do absurdo da condição humana, tendo a revolta como convite à ação, para fornecer sentido à existência.
O romance foi publicado em 1947, e narra a estória da peste bubônica, que assolou a
pequena cidade de Orã, na costa da Argélia, com 200 mil habitantes. A inspiração de Camus veio de uma drástica epidemia de
cólera, que dizimou grande parte da população da cidade, em 1849. Em tempos bastante remotos, a bactéria da peste
bubônica devastou aquele local, mais precisamente, em 1556 e 1678, com surtos
posteriores, de menores proporções. A obra foi ambientada na década de 1940, como uma alegoria aos horrores da Segunda Guerra
Mundial.
A peste bubônica é transmitida
principalmente por pulgas de ratos, infectadas com a bactéria Yersinia pestis,
causadora da enfermidade. A doença é bastante conhecida, em razão da pandemia
que dizimou entre 30 a 60% da população europeia, no século 14.
Chamada de ‘Peste Negra’, foi uma das mais devastadoras da história humana,
levando à morte de 75 a 200 milhões de pessoas, na Eurásia, uma das maiores quedas demográficas já
registrada.
Na obra ‘A Peste’, o narrador e
protagonista da história é o Dr. Bernard Rieux, um médico que relata suas
experiências, depois de ter compartilhado as angústias diárias dos cidadãos de
Orã. Também utiliza escritos de outros personagens para relatar a peste, que
assolou repentinamente a cidade.
Neste post, discutimos os principais temas presentes na obra, com reflexões importantes para se pensar na saída do Brasil, do atual contexto de pandemia. A obra de Camus nos leva a refletir sobre a indiferença dos políticos, diante de cerca de 141 mil mortes, pelo novo coronavírus (os dados de 27 de setembro de 2020). Também lança luz sobre o egoísmo daqueles que não usam a máscara de proteção e ignoram o trabalho estafante, o risco e o cansaço acumulado, pelos profissionais da saúde.
A história mostra que a vacina já erradicou
doenças, que devastaram a população humana, em diversos locais do Planeta, a
exemplo da varíola. Porém, em meio a mais grave crise sanitária do século,
cresce o número de pessoas que compartilham a tese falaciosa de que as vacinas
não devem ser obrigatórias.
Desprezando ou minimizando a ciência e a medicina, esses cidadãos posicionam-se contra a importância da pesquisa científica, e do potencial da descoberta de uma vacina eficaz, para pôr fim a atual pandemia. A onda de obscurantismo e ignorância que se abate sobre o País, sob a influência do governo brasileiro, propaga não apenas o vírus, mas também notícias falsas. Uma delas é de que as vacinas podem trazer mais riscos à saúde do que benefícios.
1)
O egoísmo como obstáculo à luta contra a peste
Bactéria da peste bubônica é transmitida por pulga de roedores
A peste deixou a cidade de Orã em
estado de sítio, onde os habitantes eram confrontados diariamente com o
sentimento de exílio e aprisionamento, dentro do seu próprio país. A prefeitura
impunha isolamento aos doentes, inicialmente em hospitais, depois em prédios
públicos, adaptados para o tratamento.
A quarentena era compulsória, aos
familiares dos infectados pela moléstia. Ocorria em locais públicos, como
estádios adaptados, onde eram submetidos à vigilância sanitária.
As famílias deviam notificar,
obrigatoriamente, os casos diagnosticados pelo médico, e consentir no
isolamento dos seus doentes, em salas especiais do hospital. Por isso, havia
grande resistência por parte das famílias, que preferiam conviver com a peste,
a enfrentar as consequências previstas na lei.
Levado para o hospital, o destino
mais provável do acometido pela peste seria a morte, sobretudo das populações
pobres, diante da falta de remédios eficazes para tratamento. Muitas vezes, era
necessária ação policial para se conseguir retirar de assalto, rapidamente, os
contaminados pelo micróbio.
Quando as mortes pela doença tomaram
maiores proporções, as portas de entrada na cidade foram completamente fechadas,
e ficaram sob guarda, por tempo indeterminado. Porém, como ocorre com as
guerras, as pestes encontram sempre as pessoas desprevenidas.
No começo da epidemia, as pessoas
tentavam seguir sua rotina normal, não acreditavam na gravidade do flagelo -
consideravam algo irreal. Assim, não tomaram as devidas precauções, e pensavam
que tudo ainda era possível.
Continuavam a fazer negócios,
preparavam viagens e tinham opiniões. ‘Como poderiam ter pensado na peste, que
suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca
alguém será livre enquanto houver flagelos’, relata o narrador.
As pessoas continuavam colocando em primeiro plano as preocupações pessoais. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava seus hábitos, ou atingia seus interesses. Muitos cidadãos, reduzidos à inação, pelo fechamento do comércio, trânsito e escritórios, enchiam as ruas, os cafés e os cinemas. Até parecia que a cidade estava em festa, ou em férias generalizadas.
2)
A indiferença diante da morte
No período em que a obra foi escrita, a Argélia era uma colônia francesa, marcada por enormes desigualdades sociais, entre colonos ricos (donos de terras) e operários pobres. A maioria era uma população árabe, que vivia em subúrbios superpovoados, áreas mais afetadas pela peste.
Essa população pobre enfrentou muitas dificuldades, durante a epidemia, em razão do desemprego e da situação de desabastecimento. Os alimentos se tornaram muito caros e esses cidadãos chegaram a passar fome.
No decorrer dos meses, as estatísticas de mortes pelo micróbio davam saltos. A morte se tornou algo comum e o desespero se tornou um hábito. Em Orã, o sistema de saúde entrou em colapso, bem como o funerário.
No auge da epidemia, os sepultamentos tornaram-se impossíveis, por falta de pessoal e dos insumos necessários. Os corpos passaram a ser transportados em bondes, para serem cremados nos arredores de Orã. A morte nunca esteve tão próxima, na atmosfera da cidade.
A reflexão do personagem Rieux, sobre epidemias históricas, é ilustrativa da indiferença que se torna comum, diante da banalização da morte. Recordando números, ele lembrava que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de 100 milhões de mortos. Como mostra o narrador:
‘Mas que são 100 milhões de
mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E já que um
homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres
semeados através da história esfumaçam-se na imaginação. O médico lembrava-se
da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas
em um só dia. Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí
está o que se deveria fazer. Juntam-se as pessoas à saída de cinco cinemas para
conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer aos montes para se
compreender alguma coisa. Ao menos, poder-se-iam colocar alguns rostos
conhecidos nesse amontoado anônimo. Mas, naturalmente, isso é impossível de
realizar, e depois, quem conhece dez mil rostos?’.
3) A negação da ciência pelas autoridades
Nas antigas pandemias de peste
bubônica, médicos usavam máscaras, com ‘bico de pássaro’, como na figura acima.
Na época, acreditava-se na teoria da transmissão de doenças infecciosas por
miasmas, odores fétidos que vinham de matéria orgânica em putrefação, e da água
contaminada. Com isso, em tese, a máscara nesse formato purificaria o ar, antes
de chegar à respiração do médico.
No livro ‘A Peste’, o narrador mostra que, logo no começo da epidemia, quando o médico Rieux recomendava medidas implacáveis, encontrou resistência por parte das autoridades da cidade. A Prefeitura adotou apenas algumas medidas, nos locais mais discretos de Orã.
O prefeito não queria causar pânico ou inquietar a opinião pública. Considerava as orientações de dois ou três médicos, incluindo Rieux, um ‘alarme falso’. Outros médicos hesitantes apoiavam essas autoridades, que não encaravam a situação de frente.
Rieux alertava que os focos de infecção cresciam. Pela rapidez com que a doença se propaga, se não fosse detida, poderia matar metade da população, em menos de dois meses. Por isso, era necessário tomar precauções excepcionais, adotando as graves medidas de profilaxia, conforme previstas na lei.
Enquanto as autoridades negavam, inicialmente, a gravidade da doença, e a imprensa negligenciava sua cobertura ou difundia notícias de otimismo, a bactéria se espalhava e ceifava vidas, principalmente dos subúrbios da cidade.
As autoridades de Orã também tentaram manipular a divulgação dos números de mortes pela peste. O personagem Tarrou, que exerceu importante papel no combate à epidemia, observou que, com o agravamento da peste, o rádio deixou de anunciar as centenas de óbitos por semana, para passar a comunicar noventa e dois, cento e sete ou cento e vinte mortos por dia.
‘Os jornais e as autoridades brincam de espertos com a peste. Imaginam que lhe tiram alguns pontos porque cento e trinta é um número menos impressionante que novecentos e dez’, observava ele.
Com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, a opinião pública tomou consciência da situação. Transformações mais graves modificaram o aspecto da cidade.
Para começar, o prefeito tomou medidas mais fortes, relativas à circulação de veículos e ao abastecimento. Assumiu a responsabilidade, como ele dizia, de intensificar, a partir do dia seguinte, as medidas prescritas. A notificação compulsória e o isolamento foram mantidos.
Depois de algumas semanas, o medo generalizado e bastante profundo fez com que os cidadãos começassem a tomar consciência da situação.
4) A saída da epidemia é coletiva
A epidemia da peste bubônica começou em abril, mas foi em meados de agosto que tomou proporções alarmantes. O livro ‘A Peste’ narra a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade, que perceberam que a saída é coletiva, uma vez que a epidemia era um problema de todos, e era necessário combatê-la.
Os profissionais de saúde, representados por Rieux, estavam esgotados. Eram semanas estafantes, com poucas horas de sono e sem descanso. Ele e seus amigos (Tarrou, Rambert, Grand e Gastei) resistiam ao cansaço, e faziam um esforço sobre-humano.
Diante da invasão brutal da doença, Tarrou teve a ideia de organizar equipes sanitárias voluntárias, paralelas ao trabalho das autoridades, que já estava suplantado. Rieux ficou animado, pois sabia que os meios de luta contra a peste ainda não eram suficientes. Faltava material médico, e pessoas para trabalhar - em todas as áreas.
Grand assumiu uma espécie de secretaria das equipes sanitárias. Parte das equipes sanitárias se dedicava a um trabalho de assistência preventiva, nos bairros mais populosos.
Outra parte dos grupos ajudava aos médicos, nas visitas domiciliares, garantindo o transporte dos doentes e até, mais tarde, na ausência de pessoal especializado, dirigia os carros dos doentes e dos mortos. Os cidadãos entenderam que deveriam agir, como se não tivessem sentimentos individuais.
Houve mobilização, para que cada cidadão fizesse o necessário, na luta contra a peste, pois era um problema de todos. O velho Gastei dedicou-se a fabricar soros ali mesmo, com material precário, que fizeram grande diferença, quando, mais tarde, a peste assumiu uma versão pulmonar, mais contagiosa. ‘Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste, e sentimentos compartilhados por todos’, dizia o narrador.
A conclusão era sempre o que a equipe de trabalhadores da saúde, especialmente Rieux, já sabia: ‘era preciso lutar, desta ou daquela maneira, e não cair de joelhos. Toda a questão residia em impedir o maior número possível de homens de morrer, e de conhecer a separação definitiva. Para isso, havia um único meio: combater a peste’, conclui o narrador.
5)
A cidade continua ameaçada
No final de janeiro de 1948, a infecção recuava. Os comunicados da Prefeitura indicavam vitória sobre a doença. A cidade foi reaberta e as pessoas estavam eufóricas, embora continuasse havendo mortes. Festejavam nas ruas, como se nunca tivessem passado por tamanho trauma coletivo.
As pessoas passaram meses na prisão e
no exílio, mas na primeira esperança, precipitaram-se como loucas, para
ultrapassar a peste, incapazes de acompanhar-lhe o passo até o último momento.
Mas Rieux sabia que aquela alegria estaria sempre ameaçada. ‘Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava, e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca; pode ficar dezenas de anos adormecido, nos móveis e na roupa, esperando pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços, e na papelada’.
Conclusão
A estética do absurdo, adotada por Camus, no livro ‘A Peste’, nos leva a refletir sobre a nossa indiferença, diante da realidade brasileira. A maioria das populações pobres, das periferias, invisibilizadas pelas enormes desigualdades sociais, padecem pelas consequências dessa pandemia (desemprego, doença, fome, falta de moradia, violência etc.).
Alguns países europeus já enfrentam uma segunda onda da doença. Manaus, no estado brasileiro do Amazonas, onde a pandemia foi mais devastadora no País, já enfrenta uma nova explosão de casos da Covid-19.
O momento ainda exige cautela, pois o vírus continua circulando. Ainda não temos imunidade coletiva, o que só será possível efetivamente com uma vacina. A ação deve ser coletiva, para que possamos reverter essas tristes estatísticas, das vítimas do novo coronavírus.
Fonte: Letras Ambientais
(JA, Set20)