Há governantes que gostam de impor seu
poder pelo medo
‘The Creation of the Heavens’, 1508-12 (detail) -^- Michelangelo Buonarroti, Capela Sistina, Vaticano, Roma-IT |
No começo deste ano, ao
assumir a pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves
declarou que o Estado podia ser laico, mas ela era ‘terrivelmente cristã’.
Jair Bolsonaro gostou da
expressão e, em julho, durante um culto evangélico, disse que ele pretendia
nomear, para o Supremo Tribunal Federal , um juiz ‘terrivelmente evangélico’.
Há governantes que gostam de
impor seu poder pelo medo. Mas será que há cristãos que querem mesmo ser
medonhos?
Muitos cristãos sentirão
repulsa diante da ideia de afirmar a sua fé pelo medo que poderiam incutir nos
outros. Entendo, mas o cristianismo ‘terrível’ não é uma invenção de Damares e
Bolsonaro.
Os cristãos, os judeus e os
islamitas são exclusivistas, ou seja, adotam o Antigo Testamento, no qual Deus
proclama: não terás outros deuses além de mim.
Agora, o judaísmo não se
tornou missionário por isso. A ideia é: meu Deus é o único verdadeiro, os
outros podem acreditar no que quiserem —eventualmente, veremos no fim quem
tinha razão.
O cristianismo, ao contrário,
tornou-se imediatamente missionário, como se a ideia de que só nosso Deus é o
verdadeiro acarretasse o dever moral de convertermos a todos os que veneravam
outros deuses. O Islã tomou um caminho parecido, com a consequência que as duas
religiões parecem estar em guerra até hoje.
Duas observações:
1. É sempre sábio desconfiar dos que
querem nosso bem —quer estejam vestidos de cruzados, de comunistas ou de
pastores.
2. O caso dos judeus mostra que a
crença que nosso Deus seja o único verdadeiro, não nos dá necessariamente o
dever e o direito de convertermos o mundo a ferro e fogo.
O cristianismo atribuiu a si
uma vocação missionária universal ao lutar para se tornar religião oficial do
Império Romano. Mas essa circunstância não explica por qual razão interna (e
não só de expansão pelo mundo) os cristãos se tornaram logo ‘terríveis’. Por
que precisaram que todos os outros adotassem as suas crenças e as suas regras
de comportamento?
Talvez haja, nos anseios
missionários, uma vontade de fazer o bem. É possível. Mas os anseios
missionários, sobretudo quando se tornam impositivos e violentos, mal escondem
a boçalidade. O que é a boçalidade? Nenhum cristão consegue controlar seus
desejos “pecaminosos” e as dúvidas de sua fé.
Quanto mais os desejos e as
dúvidas o pressionam, tanto mais ele se torna boçal, ou seja, tenta reprimir
nos outros tudo o que ele não consegue reprimir nele mesmo.
A boçalidade cristã tem uma
longa história, que, aliás, deveria ser contada nas salas de aula (isso, se as
aulas não fossem lugares de doutrinação cristã e boçal, justamente). Durante o
primeiro milênio, a boçalidade se encarregou de exterminar e apagar um outro
cristianismo, menos ou nada boçal, que poderia ainda ser o nosso (para começar,
veja M. Onfray, ‘O Cristianismo Hedonista’, ed. Martins Fontes).
No mesmo período, a
boçalidade também destruiu a cultura clássica greco-romana (veja C. Nixey, ‘A
Chegada das Trevas - Como os Cristãos Destruíram o Mundo Clássico’, ed.
Desassossego).
E a boçalidade vingou quando,
na Renascença, a razão começou a semear dúvidas. Será que a terra é plana ou
redonda? Será que está mesmo ao centro do universo? Os boçais foram deveras ‘terríveis’:
‘Para afastar as
dúvidas que surgiam neles mesmos, eles se puseram a queimar bruxas e hereges’.
A ministra Damares se
preocupou recentemente com a possibilidade de que uma feminista se masturbasse
com um crucifixo.
Há 400 anos, numa praça de
Toulouse, um jovem filósofo, Giulio Cesare Vanini, foi executado por pensar que
há leis da natureza e que talvez haja evolução das espécies. Antes de ser
estrangulado e queimado (e que suas cinzas fossem no fim dispersadas), o algoz
lhe cortou a língua, culpada por falar demais.
Quase sempre, nos últimos
momentos de um herege, havia um boçal ‘terrível’ que lhe estendia um crucifixo,
para que fosse a última coisa que o supliciado contemplasse. Não é improvável
que o sangue de Vanini tenha espirrado no crucifixo. Se isso aconteceu,
acredito que o sangue de Vanini sujou o crucifixo muito mais profundamente do
que a lubrificação de qualquer feminista imaginada por Damares.
Sei, a história de Vanini foi
400 anos atrás…o tempo passou, não é? Mas a clínica mostra que os boçais
continuam capazes de tudo para evitar
encontrar seus próprios demônios.
Fonte: Contardo Calligaris, Psicanalista, autor de 'Hello
Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de
Menina?', com Maria Homem (Papirus)
| FSP
(JA, Dez19)